terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Doença sem cura

O doutor disse que eu não quero me curar. Lembro que cheguei dez minutos mais cedo, como sempre do lado de fora esperando ansiosamente por respostas, como as nossas primeiras consultas em que ele sempre falavam palavras boas e bonitas. Mas naquele dia, só queria que ele me ouvisse. Tentei resumir uma história gigantesca que ficava ainda maior enquanto eu enrolava as palavras. Ele pediu que eu fechasse os olhos e disse que eu não queria me curar. Umas cinco vezes pelo menos, disse que a quase um ano conto sempre a mesma coisa e não volto com algum progresso, nem digo que estou tentando. Eu precisei sair frustada, esquecer minha educação e sair pisando firme pela rua com o coração explodindo e resmungando a incompetência daquele terapeuta, que sempre me faz contar a mesma história pra dizer sempre a mesma estupidez. Ele tinha que me curar e pronto. Isso a alguns meses, nunca mais voltei lá. Não voltei por dois motivos, andei sentindo ausência desses sentimentos que costumava compartilhar com ele e porque cheguei a algumas conclusões sozinha. Quando eu respondia que estava tudo bem após a pergunta "O que está acontecendo aqui?" na verdade passavam um milhão de coisas na minha cabeça e tudo que eu queria responder é que eu amava as palavras e queria tomá-las todas pra mim a ver qualquer pessoa, como da vez que vi uma mulher atravessando bem devagarinho a rua com um guarda-chuva roxo pra não sujar a beirada da calça  e escrevi um texto imenso sobre a paz que ela me passou porque tinha confiança que ela era forte o suficiente pra enfrentar a enxorada sozinha e eu fui embora sabendo que se ela conseguia e também consigo. Ou então da vez que parei em frente ao um restaurante e fiquei pensando que isso lembrava restaurar e imaginei um casal reconciliando após uma briga feia. Isso tudo como se fosse uma doença compulsória de contar para o papel as coisas do mundo pro mundo me entender e encontrar respostas sobre mim que meu terapeuta em uma ano não conseguiu. E eu concordei que eu era assim mesmo, sou uma vivendo todos os meus personagens com suas dores, amores, alegrias e insônias. Daí eu lembrei que fico com raiva das pessoas que não gostam de ler, porque existem muitas palavras soltas bonitas no jornal e eles vão parar internet ri do humor negro aprender sobre como não escrever e por isso tenho essa mania que escrever uns versos nos cadernos das pessoas como manda o Rayuela. Foi quando a pergunta do doutor Roberto ecoou pela sala se o meu problema era só com as palavras, na hora eu quase não acreditei e continuei falando mais empolgante ainda que eu amava as palavras como se elas fossem pessoas, podendo abraçá-las, amá-las e odiá-las e o mundo não era nada além que um letreiro luminoso. Mal me toquei quando aquele doutorzinho falava da minha doença como uma soba de verbos ora leve outra intensa. Agora eu sei, depois de repensar, de ficar um tempo sem escrever, que ele bem tentou me curar, ele bem tentou me fazer esquecer o dicionário e ver um pouco de tv ou sair com os amigos, na hora ele só não soube me dizer, mas eu entendi que isso é coisa de gente maluca mesmo, maluco por sorrisos, prazeres e claro, por palavras. Elas são um dom de fazer o outro feliz por se entendido ou não. Elas transformam e me formou, dentro dos moldes da literatura. Uma doente com uma doença bem vinda e eu amo viver com ela. Sim doutor, eu sou doente e não quero me curar.

2 comentários:

  1. "...eu amava as palavras como se elas fossem pessoas, podendo abraçá-las, amá-las e odiá-las e o mundo não era nada além que um letreiro luminoso." Que texto foda viu.

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  2. Eu quero que seja uma doente em constante estado terminal.

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