domingo, 12 de fevereiro de 2012

O copo d'água

Eu me narro tudo desde que me tenho por cérebro. Minuciosamente, detalhadamente, dolorosamente eu me conto pro mundo, pra saber se o mundo me entende e se eu entendo o mundo. Mas o mundo nem existe quando eu começo narrando o mais profundo do que se poderia narrar, tentando responder o mais profundo que a alma pede. A pele, o cheiro, o que se diz. Como se fosse mais suportável viver assim, contando cada segundo, mostrando para sei lá o que, que eu tenho uma vida dentre todas essas vidas que se faziam perceber, sejam com seus sonhos ou seus desejos chatos. Chatice. Era o que eu me narrava até agora: música chata, gente chata com assuntos chatos. A Fabi costumava fazer umas festas legais com bebidas legais e eu também costumava gostar, mas desta vez eu só queria ir embora sem ter inventar que eu também tinha uma vida chata só para interagir e disfarçar que o salgado de peixe estava uma delícia. Mas ai voce abriu a porta e entrou. Foi então que meu narrador mudou o tom. Descreveu seu cabelo pouco, ainda claro e quase penteado. Sem nada nas mãos. Eu amo suas mãos, o jeito que voce a usa, parece que pode dominar o mundo. Os puxa sacos te abracam como se precisassem de emprego no futuro, mas eu percebo quem gosta realmente de voce, e isso me deixa feliz. Eu gosto quando gostam de voce. Porque voce é o cara que toca violão pra todo mundo cantar, porque voce é o cara que me amou da melhor forma possível e depois desistiu, e mesmo que isso me faça sentir uma dor enorme não foi por mal. Seu mal nunca foi por mal. Sorrio e volto narrar seu tênis que é sempre diferente e bonito, sua blusa verde escuro que te deixam com as costas largas do jeito que eu gosto, e narro quando voce me percebe e se sente estranho mas mesmo assim me cumprimenta. Narro também as infinitas vezes que voce me olhou esperando que eu virasse e concordasse com esse sentimento complicado que só acontece com nós dois, e ao mesmo tempo preferindo que eu não te vesse fazendo isso, porque ai voce ia parecer fraco ainda se preocupando como eu ando sentindo. Cansada de narrar eu queria levantar e gritar seu nome, até que a música acabaria e todos da festa iriam escutar eu dizendo coisas lindas e assustadoras, incompreensíveis para todos, mas voce entenderia e se sentiria horrível ao ponto de correr para chorar sozinho, não porque errou, mas porque se permitiu ser meu um dia. Mas isso não acontece, voce só levanta para tomar um copo d'água. Com seu charme inseguro de sair do conforto da cadeira. Por um momento eu queria que voce percebesse que eu te olhava muito e me perguntasse se tinha algo de errado comigo, pra mim dizer que sim. Pra mim responder com as batidas descompassadas do coração que isso só me fazia gostar mais de voce. Voce me olhou por poucos segundos, segundo registrados com transparência, segundos que diziam assim "É só um copo com água, Babi, é simples, sem canudinhos, gelo ou enfeites. Água é só água, porque voce complica tanto?" Então eu quis me esconder dentro de um abraço seu, sentindo seu cheiro de alma boa até que voce pegaria do meu rosto e pudesse entender as palavras que eu jamais conseguirei falar porque mordo a língua, deixando-a tremer no céu da boca. Então eu  tentava me convencer  de que era isso mesmo, uma mão é só uma mão, por que eu tenho que ver os espaços entre os dedos, os anéis, a dor de um dedo maior que o outro, por que? E eu quis responder com um olhar que dizia tudo bem, que eu seria uma menina simples de agora em diante, eu mataria meu narrador, meus monstros, minhas absurdas possibilidades, meus medos, meus mundos, minhas invenções. Mas eu só disse, querendo me largar de ser eu pra ser só sua, enchendo meu peito surrado e murcho de coragem, que onde voce é apenas um copo d'água, eu sou uma tempestade.  

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