quinta-feira, 5 de julho de 2012

Ainda não virou moinho

   Eu apenas queria que soubessem: eu nunca estive tão viva. Se me deixassem fazer minha vontade, a janela estaria coberta e haveria muitas prateleiras e envelopes pelo quarto, cada um deles com um papel meio amassado meio velho e amarelo com uma carta longa e tediosa. E lá fora um jardim, flores para dar cheiro  ao mundo, azuis e vermelhas agradecidas e vívidas como a minha existência. Igor ainda prometeria me salvar e trazer minha respiração à tona, então quem planta as flores é ele, mas eu ainda faço a parte mais difícil: manter nossa promessa e cuidá-las. No entanto, está claro e o chão é de cimento, pequenas rachaduras e grama morta. Assim fica mais fácil, já que respirar é uma obrigação e não alívio.

   O céu cansou-se da rotina e está dividido em três cores em degradê. Igor aparece com a cara limpa e consolada como se houvesse água suficiente para tanto choro. Não havia nele nenhum problema sério com exceção de que nunca esperava uma coisa em troca, sempre se recolhia dentro de si e ficava assombrado. Seus olhos eram lembranças de clamor por afeto, afago na mão querendo sustentar sozinha o apoio para sobreviver. E dessa vez estava sem tempo de assumir seu coração cruz. No seu testamento poderia estar escrito "No silêncio entre o vivo e o morto, fica subtendido." e ninguém se interessaria pela riqueza pelo fato de não entendê-la. Eu prefiro acreditar que todos se renderão as nossas banalidades ao ponto de chocar com o mundo.

    Igor é feito uma daquelas ambições que perduram por toda noite, impregnadas e no nascer do sol caem ao chão e fraquejam, sendo substituídas por outras, sendo jamais reparável. Ele é isso: uma irreparável verdade que esqueceu de acontecer. Mas não de mentira, e eu ainda o ouço. Resmungando para arrancar as ervas daninhas do jardim que as flores murchantes agradeceriam. Eu me sinto impressionantemente sozinha com o meu silêncio ao ponto de assumir minha solidão sem culpa. Eu sempre soube que enfraqueceria laços depois de ir embora e vim para cá e de fato. Mas volta e meia eu escuto seus passos andando pela casa ressuscitando as flores com o milagre de acreditar em alguém mais do que ela própria: terrivelmente ele mantém viva minha esperança de alcançar essa utopia de jardim-vivo e ao mesmo tempo me cravando no passado. Porque a noite termina e o novo dia vem, a ambição passa e renasce quando eu olho ela caída e fadigada ao lado da cama, falecendo, putrificando. Eu não suporto essas mortes.

   Como seria frágil e estúpido lutar pelos mesmos ideais em qualquer parte do tempo. As mesmas promessas e ganâncias boas que Igor me ajudou construir. Mais que isso: abafado e trágico. E ao mesmo tempo uma insanidade que resistiu à natureza. Agora com a voz rouca e braço fraco, mas caminhando na mesma estrada que dois anos atrás com um esforço invisível. Então agora eu olho para fora e tudo está parado, fixo e apoiado em si mesmo e penso que jamais terei uma companhia como a dele. Enfim plenamente perdida na solidão do mundo e de mim. Como se o futuro fosse o sono engasgado na garganta depois um chichilo no fim da tarde. Eu juro que demorei para entender o que acontecia: as prateleiras, os envelopes, as cartas, o jardim e suas flores coloridas ressuscitadas. Passei semanas com os olhos inchados de tanto encarar a fantasia. O tempo em coma cheio de dúvidas do que é real.

   E foi como se ele estivesse de volta, restaurando, recuperando o espaço, como se tudo voltasse a funcionar outra vez. Aproximando com uma blusa branca e sua poesia debaixo do braço recitando um poema de que deve existir. E todas as cinco pétalas balançavam lá fora e do lado de dentro podia ter o que eu quisesse. Ele falando fatalmente que acredita em mim. Igor capturando as flores e brotando-as á terra mais fortes e ativas do que nunca: um analgésico para primavera falida. E o sinal havia sido dado pelas condições dele e tudo começou a chorar por mim também, é preciso esvaziar para encher-se novamente. Éramos como cúmplices de novo, eu e meu ato heroico. Ele estava vivo e eu também. Daqui a pouco o perfume flutuará em três tons de céu. Escrevei cartas e encherei prateleiras de livros porque tudo veio sem volta.

   Ágil.

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