quarta-feira, 27 de março de 2013

Dentro de uma casa escura na periferia da cidade, de cortinas fechadas, de mesa empoeirada: o cheiro do dia era diferente. Eu lembro bem. Os móveis rústicos gemiam estalos de cansaço, o vaso de flores mortas a uma semana, o sofá sujo de tempo. A velha andava de um lado para o outro da sala sem sentir alvorada no coração, sozinha arrastando os pés no carpete azul desbotado. Trinta anos abandonada. Reclamando com as mãos na cintura, como se o corpo não acomodasse mais sua alma. Ela teve cinco filhos, foi mãe solteira. Eu vi seu marido a deixar, os três rapazes e as duas moças nascer. Eu vi e senti as ondas da dor do parto subirem ao rosto, a correria das crianças, a rebeldia da adolescência e o descaso dos homens e mulheres.  É triste pensar desse jeito, é triste ver que ela hoje vive só, alimentando gatos. Mais triste ainda é saber que dentro das gavetas que ela não abre, há quatro livros incompletos escritos em sua juventude e que nunca foram lidos por ninguém. Recordo do brilho dos olhos daquela donzela admirando cada página com tanto amor. Amor evocando as flores do jardim que quase ressuscitavam para ouvi-la declamar poesias. Tem cerca de quarenta anos que não escreve mais, não escreve porque não tem mais aquele olhar. Enquanto não existir olhar, toda palavra estará sozinha. O repórter na televisão anunciava chuva e o toque da campainha dizia que o almoço chegava. A velha acumulava setenta e oito anos na corcunda que a faziam andar devagar e exausta. 



Eu sou a casa escura na periferia da cidade.



Abriu a pequena vasilha de almoço traga pelo rapaz do restaurante mais próximo. Olhou, suspirou. Diabetes. Problemas no coração. Ainda disse em voz alta alguma coisa sobre trabalhar e sofrer e suar, para no final da vida, não poder nem comer. Fechou e jogou tudo no lixo. A sua dor atingiu-me o teto. Não se tratava puramente da comida. O alimento que faltava era a inspiração, a sensibilidade para respirar o mundo. Sim, aquela velha já foi a mulher mais sensitiva que girassóis no inverno. Seu coração transbordou com brutalidade a saudade. Ao mesmo tempo que os grãos iam caindo, eu podia ouvir seu pensamento uivar: eu tenho a vida, mas a vida escapa de mim. Lúgubre ela saia em direção a varanda do fundo, passando pelos corredores cheios de quadros. O que me incomoda de verdade não são os pregos nas paredes, mas o quanto é difícil manter pendurado o peso das fotografias. O peso dos sorrisos, das memórias. A história é farta e eu quase não aguento. Eu não posso fazer nada, isso é tudo que eu tenho a dizer. Os humanos que escolhem viver assim, eu acho. Ela sentou na cadeira de balanço e passou a observar a chuva que estava vindo. Eu não sabia o porquê dessa quebra de rotina da velha, mas muito provavelmente, ela sim. Ela sabia porque por um minuto sorriu. Era um sorriso realmente bonito que refletia todo desespero e doçura de enfrentar os anos com bravura suficiente, de chegar a esse ponto sem conhecer nada além da pele. Não importava seus sonhos frustrados, o esquecimento dos filhos, a traição do marido. Isso não o sufocou naquele instante único. Ela fechou os olhos e não pude mais sentir sua respiração. Eu só sou só tijolos e cimento, mas nenhuma outra casa vai assistir uma morte tão sublime quanto essa.