quinta-feira, 26 de abril de 2012

Eu sou uma mentira de verdade

O telefone tocou pela segunda vez e eu não me movi. Permaneci sentada no tapete aveludado e sobre a velha almofada verde desbotada, rodeada de papeis amarelados e envelopes pretos que quase eram imperceptíveis pela escuridão da sala silenciosa. Um pouco mais distante, talvez no cômodo mais próximo do vizinho a televisão tremia e o som abafado do vinil na parede do canto me empalidecia o rosto, e enquanto o telefone tocava pela terceira vez eu tentava me lembrar daquela melodia meio arranhada e lerda que escutei enquanto alguém lia um conto sobre a sarjeta de todos os grandes heróis. "Desespero confortável" dizia meu corpo ao mover de um lado para o outro do chão e repetia: Eu sei que é desesperador, mas parece tão agradável. 

Em um intervalo de quinze minutos o telefone desistiu e deixou em paz assustadora meus cabelos desajeitados que tomavam banho das tralhas no piso. Qualquer outra distração não poderia ser necessário para viver, é perigoso se contaminar pelo desejo de essencial, mas esse é o mal das pessoas pessimistas: a genialidade ás escondidas. 

O telefone perturba mais uma vez a dança das mãos detalhando no ar sentimentos curtos, fazendo-as cair contra o chão, revelando a frustração de ter que manter ligado o vocabulário ineficiente de atender alguém sem ter que parecer mal educada e ser bom o suficiente para explicar que está num processo interno de ressecamento e por isso uma conversa vaga deve ficar para depois. E foi necessário um impulso bem maior na coluna para levantar e arejar os sentidos. 

- Alô.
- Oi, é voce?
Então agora percebia o tamanho do desastre que pode ser atender um telefonema na hora errada. "Sim"  respondi seco.
- Esperei ver voce no teatro hoje, mas pelo jeito voce não apareceu, está tudo bem? - Continuou a voz do outro lado da linha e me lembrei o quanto é perturbador a necessidade de explicar a alguém que voce está superlotado de atividades sociais e precisando de um tempo intimo com seus medos. 
- Só estou cansada. 
E o pó voltou a desabar sobre os móveis me causando uma profunda dificuldade de expressão.
- Olha me desculpa se estou incomodando, eu sei que está tarde, mas voce não aparece a dias.
- Eu estou bem, ok? - E posto isso, a próxima atitude seria de correr para psicoterapia para preencher meu momento de tédio com pó nas entonações sobre as provas e como será meu futuro previsto.
- Voce leu o livro que te dei? - Continuou persistente.
- É bem interessante como o Rogério vacila em ter apenas trinta anos e meia história pra contar.
- Eu gosto como o autor descreve os olhos grandes de Mariana como se ela vesse tudo.
(Silêncio)
- O que voce está fazendo? - Não desiste o perseguidor e destruidor dos meus momentos solitários e vagos em que quase posso desconfiar do próprio reflexo no espelho.
- Nada.
- Olha, não precisa me tratar assim, voce quer que eu desligue?
- Não é isso, eu tomei o chá verde que alguém me deu e estou indisposta pra viver.
- Chá verde?
- Não sei do que se trata.
- O problema é que voce nunca está disposta.
- Pra que?
- Vida.
- Vida?
- Já entendi, voce quer que eu cale a boca, eu vou desligar. Mas antes não posso esquecer do motivo real de ter ligado. Eu entendi seu texto. - E sua explicação atravessou o telefone e pude enxergar seu rosto de quem estava de saco cheio dos meus momentos suspensos.
- Que texto?
- Da história do casal no aeroporto.
- O que tem ele?
- A menina.
- O que tem ela?
- É voce.
- Eu?
- Aconteceu que eu lembrei das duas últimas vezes que eu fui no aeroporto, e é impossível essa história ter acontecido lá. Pode ter sido alguma coisa mais interna, sabe? Talvez na sua cabeça.
- Mas isso não tem sentido.
- Eu também achei, só que voce não faz sentido, portanto está super na lógica. Eu tinha me enganado, agora eu entendo. Voce que inventou isso de conjunto vazio, típico de gente pessimista e acredita que nada pode ser perfeito.
- Agora voce está falando demais, quero que desligue.
- Por que voce não admite pra mim?
- Eu não escrevo pra as pessoas me entenderem, Luiza, eu escrevo pra mim ler depois e saber o que fiz de mim. Por que voce está sempre tentando me racionalizar enquanto eu sou incompleta e errada?
- Então voce admite?
(silêncio)
- Olha, escreve isso no seu blog pra todo mundo saber que sua grande mentira, é verdade. Boa noite.

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