sábado, 9 de junho de 2012

Alicia não vem mais aqui

   Não a observei tão atentamente senão quando limpou o rosto dos fios escuros de cabelo sobre a testa, e ainda que silenciosa, os olhos pensaram alto sobre um conto de terras choramingando e depois pôs-se a cantarolar uma canção fadigada num tom baixo e leve: são momentos lá dentro de nós. E simultâneo a nova aparência que tomava o seu rosto, sua voz soava mais alto e ela brilhava como se fosse a própria natureza da luz. Não havia ninguém na sala, do mesmo modo que não havia nada além  de si mesma a não ser a música. 
   Deitou-se depois de perceber que até as mais célebres cantigas chegam ao final e quedara-se triste e distraída com os pensamentos invasores chegando com mais um nascer da noite. Fitou-me curiosa, a boca pálida e dentes amarelados sorriram seco, não pude compreender essa cor de vida longe do tempo, e me abraçou a raiva da separatividade tão vazia lançada com seus olhos firmes: Rosto de sentimento inacabado. E alguma coisa perdida se achegava no calor de duas almas soando e compartilhando do mesmo desespero, fracas e doídas. 
   Sua voz fina de entonação macia ecoou pelos móveis e depois calou-se calma, engolindo a garganta apavorada.
    - É bom indo se acostumar com o clima daqui. E voou longínqua sem tropeçar em nada, embora quisesse ter percorrido um caminho mais complicado e depois caiu os olhos para o chão. Acendeu um cigarro, tragou um vez e esperou uma resposta tão direta e nua.
   - Tô com as mãos ásperas, mas sei que com alguns hidratantes fácil acostumarei. Consentiu com a cabeça e voltou-se a escorar na poltrona do patriarca. 
   Corpo limpo e pupila tímida, voz de borboleta aprendendo a voar, movimentos leves e traumáticos, afeição sem alegria e emoção. Nem ela se misturava à própria consciência do seu passado, presente e futuro. Ás vezes, esse fundo rústico da sala de madeira, estofado velho e empoeirado do sofá, o couro manchado da poltrona e a paisagem entrando pela janela fazia com que ela chorasse, mas sempre vai embora sem se despedir e por isso, consegue caminhar sem o apego das coisas, então elas não enfraquecem o ego, o centro do seu corpo magro e quieto. Sublime e solitária: tão constante como o ciclo da lua.
   Perdeu ilusões, sofreu de amor. Aconteceu-lhe a morte do pai e o desgosto da mãe, acho que procurou abrigo nos avós, mas eles desaprovam o cigarro. Correu em busca de um conforto amigo, surpreendeu-se. Muitos anos de sua existência gastou-os em frente a lareira enquanto rasgava fotos antigas, chorava raramente, dividiu-se e se reencontrou na música. Então sempre murmura notas frescas, aproveitando o curto da vida de um jeito simples e interior. Tem o espírito forte mas já tentou se matar. Talvez uma ou duas vezes, depois bebeu e dormiu três dias. 
   Agora trabalha sozinha com um negócio pequeno, vem ao mesmo hotel todo fim de semana para castigar o coração e sentir saudades do pai. Forrada de cinzas de cigarro ela passa a tarde deitada na poltrona sendo infeliz e pensativa. Já tentou sonhar de novo, ir a lugares onde encontravam pessoas que dançavam, amar alguém. Inútil. Ela se fez tão completa e duradoura que sua existência não é capaz de se entregar e findar no ápice de felicidade. Feliz como nenhuma outra criatura poderia ser. Nasceu para viver ou morrer, optou por morrer e morre docemente. Ninguém sabe de mais nada. Certamente, ela é um mito agora.
   Dentro de dez minutos levantou-se de novo, franziu a testa, sussurrou umas palavras e escondeu o rosto pro detrás dos cabelos: um fantasma. Nenhum detalhe a dominava, suas respostas chegavam mortas e amontoavam-se sobre suas costas. Inclinou-se para frente, levantou parou uns segundos e andou até desaparecer. Tudo deslizou e derreteu quando ela se foi, até a voz fúnebre da recepcionista é tremula e profunda ao dizer á um homem velho: Alicia não vem mais aqui. 
   Vagarosamente canto um trechinho e derramo flores no seu caixão, flui a insuficiência de qualquer raciocínio, enlouqueço integralmente e descanso nas ações tão pobres de Alicia.  Jogo sobre a vida daquela mulher - ao ponto de entendê-la - meu pensamento quente: "são os momentos lá dentro de nós, são outros ventos que vêm do pulmão." Desligou-se de tudo que mantinha o restinho de vida e nunca mais voltou. Quem me dera.

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