quinta-feira, 12 de julho de 2012

Grãos incolores debaixo de águas

   Eu estava de novo lá, em um dos muitos prédios altos, velhos e cansados de tanto peso da cidade. O porteiro me encarava curioso sobre a razão que fez voltar, talvez no fundo soubesse mas detestava hipóteses. "Quarto andar" isso eu não esqueci, Roberto tem preguiça de subir tão alto. Da sala não lembrava o número, apenas que era bem próxima da janela no fim do corredor, onde eu passava olhando a cidade enquanto ele demorava seus dez minutos contados. Quantos meses teriam? O suficiente para colocar uma flor encima da mesa, talvez? Nem demorou tanto para alguém corrigir o pensamento: um secretária.  Mulher alta, mas dela só percebi o cabelo porque era preto brilhoso e comprido e a simpatia, um sorriso aberto e só. Foi um susto e depois um alívio. Ele ainda consegue me surpreender.
   Depois de um atendimento desacostumado esperei os dez minutos na ante-sala junto com as revistas e o sofá amarelo encardido. Havia poeira desabando e um silêncio aflito, faltava o calor abafado e o escuro comum, mas nada que comprometesse a personalidade do lugar. A presença de Roberto pontou à alguns metros mas pude escutar ele reclamando do trânsito quando saiu do elevador, provavelmente com muitas pastas na mão e uma garrafa com água pura menos quente que sua pele. Ele entrou a moça foi embora. "Olha só quem temos aqui, sabia que você voltaria" ele disse como quem tivesse ganho um prêmio, satisfeito com a previsão.
    - Sabia?
   - Unhum, pessoas como você sempre voltam. - Ele respondeu enquanto entrávamos na sala. Sim, a sala ainda tinha o mesmo hálito, os mesmos móveis nos mesmos lugares, nenhuma novidade na estante, apenas mais papeis encima da mesa e a ausência das cortinas. - Tem o quê, seis meses? - perguntou novamente agora caminhando em direção à poltrona onde passava os melhores momentos do dia, ele não disse, mas eu sei. "Por ai" respondi concordando sozinha que o tempo correu demais pra mim.
   - Imagino como passou, talvez não, mas não está aqui por saudade.
   O dia estava caindo e eu queria chorar toda vez que encarava os olhos dele meio sofrido e forte. Roberto tinha tanta paz que poderia ser virtual, nada pode, imaginava, perturbá-lo, nem eu com minhas circunstâncias. Era tanta tranquilidade que queria assaltar seu espírito e tê-lo pra mim. Ele me fez bem por muito tempo mas já passou e agora os fantasmas do lugar e as aranhas nas quinas da parede não me reconhecem. "Estávamos melhorando, não é? Não devia ter ido embora." Ele continuou calmo e o tom de voz foi tão indiferente que não senti onde queria chegar. "Pessoas como eu vão embora antes de acabar, Roberto, adiar as partidas e depois voltar recomeçando. Odeio fins, você sabe". Ele ficou em silêncio e absorveu as palavras como se fossem dele.
   - Nem todo mundo tem paciência para isso, Laura. E não estou falando de mim, sabe que tenho muito apreço por você. Deixaria você ir e voltar quantas vezes quiser sem importar se despediu ou não.
    - Foi o sonho, Roberto. Eu o tive de novo em uma rota de hipnose.
    - Quer dizer que agora você participa disso?
    - Foi por acaso, mas foi. Aconteceu sem que eu estivesse dormindo, sabe? Como se fosse a realidade, e surgiu sem querer, não foi coisa da minha cabeça, não idealizei e previ os resultados. Eu tentei de verdade.
    - Como foi?
   - O de sempre. Eu viajo desde o passado ao futuro flutuando numa caixa infinita e sem dimensões que inicialmente era branca e depois vai ganhando cor. Isso porque o rapaz que comandava a meditação mandou pensar em uma cor, mas foi idêntico ao sonho. Na hora de lembrar do passado eu fico paralisada em uma única foto que tenho em casa. E como um tombo, acordo para realidade e sinto como se minha pele pesasse muito, como se eu não coubesse no corpo. Quando ele citou o futuro foi um pouco diferente.
   - Eu lembro que você não conseguia se ver nas coisas que via, como família, trabalho...
  - Justamente. Dessa vez eu vi. Na verdade, eu lutei muito pra ver, mas era como se minha visão fossem papéis e a medida que as cores começavam a ficar nítidas, as folhas eram arrancadas de mim á força, e nenhuma se fixou ao ponto de conseguir ver família ou trabalho ou qualquer outra coisa. Era como se eu não existisse, entende? O máximo que captei foi uma pessoa, bem parecida comigo em cabelo e corpo, mas não tinha rosto.
   - O quê?
   - Isso mesmo, não havia nela olhos ou nariz, boca, orelhas, era um fantasma e foi horrível. Mas sabia que era eu. E estava sozinha, não por abandono, mas por escolha. Foi tudo que senti. Depois eu tive vontade de desmaiar e dormir uma semana.
   Roberto levantou-se e acendeu um cigarro. Pensou e olhou pra mim como se fizesse algum sentido e ligação entre o que eu contava e o que eu era, mas tinha medo de falar, de me fazer ter coragem de ir e nunca mais voltar. Ele seria alguém que saberia do meu fim e sendo ele bom ou não, mudá-lo não ia. Mas me olhava também como quem quisesse me proteger, me abraçar e roubar minha alma: deixar oco o corpo e colocar lá dentro, um espírito sublime, além que se poderia imaginar. Como se me jogasse ao mar.
   As ondas vinham e carregavam o corpo pesado, as pálpebras fechadas e enterravam profundo os resquícios e rapidamente vinha uma outra onda com o corpo leve e flutuante, de  pupilas grandes e ternas. Manso e de mãos abertas, solto. Era bom pensar que eu nasceria novamente mais limpa e vívida, uma pessoa normal que deixavam as coisas seguirem seu curso. Mas o que aconteceu só contou a si mesmo e me ofereceu café amargo e ralo.
   - Você não vai falar nada? - Foi então que começou a mentir: "nem tudo que se pensa começa a existir".
   - Roberto...
  - Você, Laura... - Ele interrompeu com os olhos alargados, pouco tristes e escurecidos, misteriosos afinal - não começou. Você é um grão incolor debaixo dos outros grãos do rio, que está debaixo do outro rio que está debaixo de outro rio... - Nessa hora ele parou atentando-se ao que falava como se a medida que falava descobrisse e a medida que descobria era verdade: que não sejam rios e sim mares com barulhos de ondas, estou sempre na iminência de enterrar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário