quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O grande espírito

   Ela com corpo esguio caminhava pela rua como uma pena deixa-se levar pelo vento. Era aparentemente leve, com pele fina mas a cabeça pesada, com pensamentos densos que às vezes fluía líquido e logo se esvaiam e outros que perduravam com força, mas nunca a atravessavam ralo, apesar de certa maciez no tom da voz quando raramente decidia meditar em voz alta, como uma confirmação. Cogitar sozinha e depois debater consigo mesma só por tédio e um pouco de hábito. Por isso era solitária, mas nunca sozinha. Nessas horas ela podia ocupar grandes espaços mesmo com a magreza que nem parecia sólida. O mundo se esvaziava para receber suas novas ideias e talvez não houvesse por esses momentos lugar para mais nada. Sobressaía esse domínio, como se com tamanha sabedoria consciente pudesse ter autoridade sobre o que acontecia em sua volta, então nada pudesse tirá-la do próprio império.

   Um dia comportava-se como uma desocupada que enseava qualquer ocupação que lhe ocupasse tempo e memória. Fazia lista de artista que queria conhecer ao longo da vida, mas sabia que quando chegasse na metade dela, reveria todos os conceitos: não importavam quantas músicas soubessem, discos, carreira, é impossível saber tanto sobre uma pessoa. Ela não sabia sobre si e por mais que soubesse negava-lhe o tempo todo. Soava, por vezes, artificial, como se ela fosse um lugar grande demais para ser preenchido e tinha a sensação que algo ia sempre faltar. Um beco, um espaço, a quina da parede. Perdia-se em si própria, na procura da cor favorita, em que bicho seria, qual o melhor tipo de arroz, qual comida preferia, melhores qualidades, piores defeitos. Fazia de si um questionário de Proust. Mania de se autoconhecer para poupar erros.

   E ao mesmo tempo não tinha nada a ver com tais perguntas. Ela buscava uma essência em fóssil enterrada em lugar desconhecido, o escárnio, as partes mais apodrecidas. Era, acima de tudo, uma mulher destronada, sem brilho. Detestava olhares demorados, como se fosse descobri-la em cada vez que isso lhe ocorria. Roubava pra ela, vidas. Escapava da que lhe foi dada e vivia a de seus personagens. Ora separadamente, ora a fusão de todos os seus corações. Não a incomodava, para os outros havia uma sinceridade, inclusive, chegam a entendê-la. Mas para ela pouco importava, sabia que logo, tudo passaria e colocaria uma outra fantasia. A vida tem muitas portas ela entrou em uma das. É uma pessoa normal. Diziam da fase de rebeldia, então fez de sua temperança a rebeldia mesmo. 

   Já em outros instantes, caçava como um animal, faminta e pronta para devorar tudo que escorria pela mente e encontrava as teorias mais absurdas sobre o que quisesse, se não existia, criava-as. Buscava e alcançava algum trecho, algum pensamento que se encaixa-se nela. E só assim podia continuar a viver em paz, na certeza de que algo podia descrevê-la em algum ponto de sua solidez. No mínimo, que tocava sua superfície e assim não precisava de explicações. Nunca deu, nunca quis. Os outros que sempre anteciparam suas escolhas. Algumas vezes condenou a si mesma a viver nesses padrões e em outras, reincorporava seu espírito rebelde e desgastava-se inteira para nadar contra a maré.

   Hoje ela não tinha desconforto, permaneceu-se inatingível, hipnotizada e envenenada na angústia egoísta e dormente nas piores verdades. Porém manteve a mente trancada para que pensamentos abandonados não atordoassem até que por fim dormiria mais uma longa noite em pleno clarão. Era assim: desligava-se sempre na procura de injetar calmantes e sossegar o cérebro que parecia não parar. Ficou em casa, quieta e silenciosa. Inventou uma maneira de ser satisfeita assim. E por mais que sua personalidade seja um perigo que se descumpre, sempre soube a hora de se desencontrar, correr e se encontrar do outro lado de um futuro, talvez, além dele. Inclusive, poderia ser mais livre, mais extravagante, menos desajustada e menos triste. Ela podia, eu podia, nós temos os recursos. Mas escolheu por levar essa marca e ser como nenhuma outra poesia é.

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