quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O ímpeto e colossal céu de Lúcia

   Escrever tanto sobre o que nunca existiu e ir em frente. Isso agrava agosto, mas é preciso saber estar distraído, inconsciente, porque o mês de negras lendas também há de passar. Lúcia, disse que, quando a chuva vem não adianta correr e pegar as roupas no varal, deixe apenas que elas se molhem e se sintam satisfeitas com o choque frio e translúcido da água. Não é preguiça, só não é qualquer um que têm essa força, porque é preciso chegar um pouco antes da vontade do céu para salvá-las e chegar antes, é enfrentar o mundo sozinha. E assim, de repente, tudo é fraco demais.

   Foi ela quem disse, e ficava sempre de braços cruzados enquanto assistia ruir as nuvens em cinza: cor de chumbo derramando lágrimas que tinha a esperança de penetrar a pele de alguém com furor e glória. É a chuva derramando a transparência que sangrava os retalhos de vida. Lúcia fica em pé debaixo do céu e absorve toda a tristeza do mundo, porque ninguém consegue calar-se como as aves no céu enquanto escorre pelos ombros o sabor misterioso e ameno do céu. Era casa, a morada de Lúcia: esse é um espaço lindo para nascer e morrer. E se encontrava no ar, muitas vezes a solidão é um jogo de trapaças. E a jogada principal é um blefe. Lúcia me fazia acreditar em algo inexistente assim.

   - O que eu quero dizer, é que você precisa confiar em umas mentiras. - Recordo dela sorrindo como se já soubesse o resultado catastrófico de suas palavras. E era duro o olhar como facas, e a boca armada sempre com uma resposta retirada de um livro. Era moça inteligente com quem passei minhas maiores delongas, daquelas de castigar e sair renovado. Nós sabemos como desistir e ainda lutamos pelo poder da crença. Se não há nenhuma garantia de acerto, invente-a. Foi assim que ela prosseguiu o discurso com majestosa face em mosaico de feridas e sonhos. E era linda, uma beleza cansada, pronta pra se retirar e dormir mil anos e ainda sim era linda porque se via com o coração e tinha pele translúcida: era a alma sobreposta. Hoje eu sei.

   Lúcia sabia ser corrosiva ou leve. Com os pensamentos longes ou dentro demais, sabia ser chuva e tocar com agudez os lençóis esticados, as roupas expostas em tempo livre. E ainda sim, não era liberta. Porque tudo acaba em um disfarce, um engano. Qual o seu começo eu não sei, mas não deve ser muito diferente de algum ato de amor, o broto mais antigo do universo. E talvez, já ali, houvesse um pouco do seu jogo desonesto. É uma saída enganar a si próprio para manter viva a fé de que o mundo será outro.

   Existem os acidentes como tudo de que virou regra ou modelo. Não é difícil analisar o mundo e encontrar suas falhas, e só agora eu entendo porque ela mantinha os olhos fechados e as mãos estáticas para esconder as verdades que não queria, em uma dessas lacunas irregulares. Mas ainda sim, eu queria que ela fosse liberta. Esquecesse seu lapso e omissão. E ainda eu, que também precisaria fugir por alguma porta esquecida aberta, uma fresta larga que eu pudesse escapar e começar a escrever sobre promessas do possível. Sem essas neblinas e a voz de Lúcia insistente e desbravadora que é preciso seguir em frente ainda que seja importante procurar pelo que ninguém quer descobrir. O toque de Lúcia é uma colisão que ainda não foi testada em laboratório, e seus resquícios ficam impregnados.

   Eu sou o que transbordou de Lúcia por não caber. Mas minha vontade de enveredar ainda me segura e não me deixa afundar. Dói não ser confiante demais como Lúcia e miserável demais como os outros. E os extremos são sempre mais fáceis. Então, pelo menos um pouco, Lúcia, esteja liberta para que eu deixe de receber sua chuva de boca fechada com a eterna saudade de um futuro decerto. 

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