domingo, 12 de agosto de 2012

O que se intercala nas frestas do infinito

- Já pensou como que pássaros morrem em dias chuvosos?
- Eles não morrem, Ana. Que pergunta tola. 
- Você salvaria algum se o visse afogando no céu?

   Cada dia menos artista e mais idosa. A morena de olhos escuros caberia em uma caixa três por quatro de tanto que se importava com pequenices. Uma lunática, quase catatônica e charmosa. Ana, na verdade, é apelido, seu nome eu não sei, para o meu conhecimento ela acorda sem expressão alguma e dorme tímida e rejeitada. Durante o dia, caminha como estivesse sendo espionada, com as mãos dentro do bolso, parece estar sempre a esconder um objeto secreto e pesado, murchando os ombros tombando a cabeça. No domingo gosta de acordar cedo para ficar mais tempo refletindo sobre si mesma.  A impressão que se tem é que onde ela passa fica monótomo e comum. Nos dias mais frios deixava tocar um blues lento e no exato momento em que ninguém cantava ela dizia em baixo tom - "Exatamente como essa música". Revelava-se doentia, fanática de pele branca feito pó de estrelas, um rosto arredondado, olhos inchados e um medo de ser. Ana era só mais uma, daquelas que chegam no restaurante e nenhum garçom quer atendê-la.

   Ela tinha os dentes afastados e o mesmo espaço vazio na boca fazia vácuo nos ossos e por isso, toda vez que ela tropeçava, pensávamos que iria desmontar e seus pedaços escorreriam para as quinas de vergonha, e ainda sim, quando caía o chão não lhe oferecia abrigo. Morava em uma cidade minúscula e no ano em que ela nasceu foi batido o recorde da mulher que chorou por mais tempo. Ela carregava essa informação como um troféu, dádiva e honra. Tudo que eu posso dizer sobre ela foi acoplado em uma sequência ilógica de seus passos. Quando se trata de Ana, deve-se entender, esquecer, re-entender, não entender e ser neutro outra vez. Ana poderia invadir um corpo de tão profunda. Ela é uma das poucos que tem a chance de ser eterna e recusa por ego ou vaidade, talvez por acidente. O silêncio causa um estrago na sua sala apertada e pouco arejada. Ana não é de longe, um humano exemplar, mas ela tinha, sobretudo, o direito de não querer a atenção de alguém.

   Eu não sei o porque de contar e escrever sobre ela e muito descobrir como. Mas sinto falta, ao olhar para ela, de ser quem não sou. Quando ela passa, todos as manhãs, em frente ao bar sobe uma agonia, um arrependimento não-se-de-quê, os ponteiros torturam e o tempo menospreza o meu clamor por saber quem é que, quando ela caminha desviando dos outros corpos, acanhada de tocá-los, canta sem voz, toca sem instrumento, vive sem provas e morre sem céu ou inferno. Alguém que lê sem palavras, voa sem liberdade e corre sem pernas. É um sentido que só existe para mim mas que quero passar na mesma intensidade que me assusta: Ana inventa um teatro de vinte e quatro horas para ser um personagem e esquecer de ser ela própria. Ao falar sempre queria dizer outra coisa, como agora, que estamos sentados na sua varanda empoeirada enquanto chove devagar e terno -  Ana parece distante e a conversa ganha outro mundo.

   A propósito, meu nome é Luiz e eu observo Ana há três meses. Hoje eu sentei ao seu lado para escapar da chuva e a primeira coisa que ela me disse foi que ela era formação sobre o que construiu sobre si mesma, cicatrizes que formavam degraus e a medida em que ela subia estava mais próxima de chegar lá. Depois disse seu nome. Não disse onde "lá" era, apenas sorriu seco como se eu fosse conseguir filtrar o que ela disse muito tempo depois, mas eu conseguiria e isso que era importante. Ela comemorou por mim vários andares antes. Ela era também, um certo poder de descoberta, pensava sozinha em um turbilhão de coisas e no final contava a conclusão para alguém, só para certificar-se que toda sua sabedoria seria repassada. Hoje ela me contou várias destas: de como o mundo era bonito e caótico, de suas histórias de infância e seus amores. Era uma moça nova de coração quente e gestos que me faziam tremer, e parecia que eu a conhecia da maneira mais intransferível.

   Depois de tanto tempo ao seu lado e salivar e chorar como nunca antes, eu sei que Ana não se importa de ser a menina desprezada. Ela é uma espécie de gauche por prazer. E embora aparenta viver um ontem mal acabado, é a pessoa mais a frente do seu tempo que se pode imaginar. Seus cabelos de medusa desprendidos do corpo colado, sua letra miúda, Ana esqueceu de acontecer para fora e ocorre de dentro.

   - Se eu fosse um pássaro, Luiz, eu queria que você me salvasse antes do céu me engolir. 
   - E eu cuidaria de você, Ana.
   - Fugiria comigo essa noite?
   - Em todas elas.

   Ela me tocou, me sentiu e nunca mais foi a mesma. E eu também. Nós não temos malas, mas temos o mundo nas mãos. Eu a beijei e mil universos passaram em volta de nós.

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