terça-feira, 16 de outubro de 2012

A ilha das Sereias I

Café frio e Pesadelos


Acordou de súbito na escuridão do quarto, passou as mãos no rosto, sentou-se na beirada da cama e ficou por cinco minutos se vendo ali, como se do lado de fora da janela pudesse enxergar o próprio corpo inerte se misturando à penumbra do contorno do seus braços. E levantou-se leve e calmamente em direção à cozinha em busca de café quente. Era três da manhã e tudo que restava na garrafa era pouco menos de meio copo. E gelado. Gelado como a noite, talvez pela lua cheia, talvez pelo silêncio emudecedor das árvores da avenida onde morava. Voltou com o copo abraçado pelos dedos e sentou-se novamente. Desacelerada a mulher que dormia ao seu lado acorda e sem dizer uma palavra, observa-o quieto e distante.  Tateia com as mãos o criado-mudo até encontrar o maço de cigarros e acende um. Acomoda-se ao seu lado e atravessa com sua voz mansa e ainda rouca de sono o silêncio remoto.
- O que foi? Outro pesadelo?
Ele leva à boca o copo e experimenta pela primeira vez o amargo sabor frio da cafeína. Fez falta o gosto forte e não poder queimar a língua também o incomodou inicialmente. E agora se voltava para dentro novamente e olhava a cena do alto: dois perdidos com sentimentos amontoados, acordados no meio da noite sem dizer uma palavra. Com esforço ela traga o cigarro, ele esfrega as pálpebras, um vento sopra e ela novamente pergunta o que havia acontecido. Sentiu devorando-o a sensação de profundo amor. E suavemente ele responde:
- Outro.
Passou pela cabeça daquela loira com olheiras o abandono do momento. E agora podendo ver, mesmo no escuro, com nitidez o rosto desconsolado, doeu a incapacidade de não protegê-lo dos perigos internos. Viu-se infrutuosa diante da amargura e tristeza. Houve naquela hora, de maneira quase imperceptível, a reciprocidade de afeição. A vontade de fazer daquele homem de costas largas, eterno. Cintilando na escuridão. Quase estendeu a mão para tocá-lo, mas conteve-se. Há noites ele vem sofrendo tormentas enquanto dorme, ela só queria mostrar que estava disposta a ouvi-lo e ajudá-lo. Não havia gesto, não havia som, não havia tempo. Só a fragilidade de si mesmos. E depois de alguns minutos, não sabiam que horas eram, e não queriam. Com a voz baixa, ele arrisca.
- Mas foi diferente. 
Ele soou vencido pelo medo, e um fracasso mútuo fez com que ela arrepiasse. O cigarro da loira acabou. Ele abandonou o copo no chão. Talvez não houvesse algo a ser feito, mas queriam ficar ali acordados até que o primeiro cansasse. Pareciam dois manequins paralisados e expostos para o universo inteiro. E a noite testemunhava-os e ainda que nada acontecesse, os três - a moça, o rapaz e a noite - sabiam que algo ainda aconteceria. Algo como um giz escrevendo as primeiras regras daquele jogo sem lei. Então ficaram móveis e tensos esperando a trapaça que a vida daria no próprio script. Ele continua agora mais rápido do que antes:
- Havia uma ilha.
- E daí? Eu já disse que não quero saber mais dessas suas ilusões. 
Ela encarava-o com raiva e depois de perceber que ele não se importava e falava com os olhos fechados, pegou outro cigarro. Um cansaço chegou e seu interesse em saber o que havia acontecido se perdeu. Podia dormir, não quis. Olhou o relógio digital que reluzia e marcava quatro e dois. Voltou os olhos para ele como se quisesse dizer "vá dormir, que eu vou dormir e amanhã será um outro dia". Ele também olhou para ela. Compactuaram segredos jamais ditos antes. Soube até que amanhã seria tarde demais para recuperações. E, rendida, falou finalmente.
- Então me conte. 
Não foi uma atitude de respeito, submissão ou amor. Foi só a única saída possível. Ela só queria tê-lo em silêncio enquanto fumava. E achava que estava fazendo o bem. Nunca soube como se fazia o bem. Agora que ele requer esse bem mais do nunca, ela se vê desamada, exposta, desmascarada. Não soube dar, quis fugir do quarto, buscar ar, voltar depois. Então ela agora tem que ouvi-lo. E vai ouvir com desespero. Com certa desconfiança. E só para ter a confiança e controle, tentou mostrar-se forte: 
- Que ilha era essa?
- Uma ilha de sereias. 

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