terça-feira, 16 de outubro de 2012

A ilha das Sereias II

Crime Passional


Apressada ela muda de posição, fica mais perto dele, cobre as pernas com o lençol branco. Ainda sentada pede para que continue. E lá estava ele, sem grandes expectativas, intacto e calmo. 
- A ilha era fabulosa. Com um gramado verde, árvores bem cuidadas e um céu límpido. Haviam sereias por todos os lados. Tinham cabelos verdes e olhos laranja. Pele branca e de cheiro bom. A cauda era fascinante, mágica. Com escamas de vidro, cintilantes em furta-cor. E estrelas que cobriam os seios. E tem um detalhe importante: cantavam. Era encantador ouvi-las. E o vidro das suas caudas refletiam com a luz do sol. Eram lindas, maravilhosas. Nunca vi nada tão magnífico. Feito cerejeiras floridas. Eram assim, feito fantasia... 
Ele parou com os olhos abertos e brilhantes. E olhava para o nada como se estivesse enfeitiçado pelo que lembrava. Ela larga o cigarro, cruza os braços e olha para ele admirada, pensando como ele ainda era um ótimo contador de estórias como quando o conheceu. Ela parecia tranquila e amável. E esperava que ele continuasse com fome, louca para saber o que ele tinha a dizer. Só que ele não percebeu. E agora com um semblante triste, fechou novamente os olhos e continuou:
- Ai eu parei e fiquei olhando. Talvez alguma coisa em mim quisesse aproximar, mas eu fiquei por um tempo só admirando. Até que me apaixonei por uma das sereias. Ela era a da pele mais branca, do vidro mais reluzente, do canto mais dócil. E eu fui conduzido por ela - então ele via que a moça sorria sem controle, como se as mandíbulas tivessem se soltado - e a medida que eu ia me aproximando mais linda ela era e menos real parecia.  Espera, eu preciso contar que estava em um barco. Também era um barco orgulhável, cheio de honra. E estava indo para uma viajem muito importante, por isso hesitei muito antes de ir à sereia. 
- Sim, sim. Ela disse com pressa e entusiasmada. 
- Então eu larguei o meu barco e fui nadando até a ilha. Até que fiquei de pé e cansado dentro daquela coisa colorida que transbordava encantamento. E era escuro lá dentro. Parecia até outro lugar. Um lugar totalmente diferente do visto pelo lado de fora. Muito tortuoso foi o caminho até o trono onde a Sereia estava. E eu me machuquei muito, sangrei por todo o corpo. E começou a ficar frio e medonho. Era um lugar terrível. Mas eu ainda queria muito ter a Sereia em mãos. Toda para mim com seus tesouros e amor. Eu queria que ela cantasse enquanto eu deitava em seu colo. Só que foi ficando pior, as flores eram podres, o céu parecia morto, cada vez mais perto da Sereia eu estava, mais dor cravada havia. Até que eu quis voltar para trás e fugir. E não consegui. 
A moça enchera os olhos d'água. Horrorizada. E ao ver os olhos fixos dele cheio de sofrimento e raiva cortando o quarto em sua direção fez com que ela soubesse que ela era essa Sereia. Mas ainda conseguiu dizer e forçar com que ele continuasse a contar:
- Por que não?
- Ao mesmo tempo eu queria ficar ali para sempre. Os dois sentimentos tomaram conta de mim até que eu ficasse perdido e cego. Eu caí no chão e comecei a ser engolido pela terra. As raízes iam me engolindo... eu fui ficando sufocado e nada conseguia fazer. Então eu percebi que o chão na verdade era areia. As sereis. Tudo. Era tudo uma mentira. Não havia encanto, não havia canto, beleza ou amor. Era uma cilada, um engano. 
- E o que aconteceu?
- O sonho começou tudo de novo. Repetiu por muitas vezes. Até que na última vez eu consegui sair. Com muita dificuldade e emaranhado de dor. Meu barco já havia partido. Eu morri afogado. 
Ela relaxou a pressão. Ainda comprimida sim, mas podia se ver livre dessa narração angustiante. Ele parecia mais cansado, porém ainda persistente. Ele tomou-a em seus braços abraçando-a com força. Beijou-a com intensidade, ela se entregava para ele dizendo que foi só um pesadelo. Ele voltou para ela respondendo: mas é tão simbólico, não é? E ela abraçava-o com mais força ainda. Queria amá-lo até que o sol aparecesse. É uma história bonita, ela disse.  E os dois estavam sendo assistidos pela noite como um casal derramados em amor que queria a eternidade toda para aquele momento. Egoístas e apaixonados. 
- Você entende? 
- É claro que sim, muito mais do que você imagina. 
Ele voltou a perguntar: É tão simbólico não é, Sereia?
E ela parou de súbito, como se mesmo sabendo de toda metáfora, ao ter que encará-la fosse ainda mais opressor. Trêmula sua voz saiu:
- Acha que eu o matei?
- Amor não mata, não é?
- É claro que não. 
- O que mata, meu bem?
Ela paralisou-se. Exausta e com medo. Ele largou-a e pegou o copo de café que estava no chão. Parecia tranquilo, vencedor. E disse:
- Que vitória doente dessa Sereia. Sabe de uma coisa, meu amor?
Ele terminou de tomar o café e ela ainda na mesma posição, com lágrimas, deu a ele crédito:
- O quê?
Ela suava frio. Ele carinhosamente tirou as mechas de cabelo da testa. Ergueu a sobrancelha direita e absolutamente tranquilo, calmo e controlado. Deitou ela sobre a cama. Com extremo cuidado lhe acariciou as bochechas, até que tirou do bolso uma adaga, brilhosa, de prata fina. E lhe empurrou contra o abdome. A mulher não gritou, não adiantaria o seu grito.  
- Sabe, meu bem, vidro não passa de areia. 

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