sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Rua 5

            Eu só sei que era sábado, ele escutava Frozen Heart e tinha vontade de chorar. Ele me fala não tão gentil que é uma droga. Foi assim - "o que você escreve é uma droga" - e no exato momento que aconteceu eu tive vontade que aparecesse uma página do word para escrever que ele era um moço alto, moreno, que eu apenas sabia que era sábado, que ele escutava Frozen Heart e tinha vontade de chorar. É claro que eu não ia contar o que ele disse. Até porque ele estava meio bêbado e antes disso, a gente só  se cumprimentou duas vezes no corredor e nada mais.  Talvez eu inventasse que ele era daquele típico que encarava a janela até a hora de dormir, daria para ele um nome feio e uma história para contar.

          Ao invés disso, a tarde era sufocante, estávamos sentados no chão esperando escurecer. Porque é sempre esperada a hora de descansar e fim do dia não é o fim, é alívio. Apesar de que nossa afeição não era de refrigério, parecia mais de arrependimento. Daqueles que escorrem líquidos e lentos, que tem, sobretudo, medo de falar, de demonstrar-se. Mas se protege, se fortalece e engana-nos como se não precisasse de vigília vinte e quatro horas. E a gente ia mingando na mesma inconstância, fracassados e sem sinceridade própria. Se estendia sobre o passeio uma pausa longa, um silêncio estendido, uma solidão lúgubre. A essência do ambiente era feito ânsia de vômito. Ambos queríamos cuspir nossas sentenças, nossas desilusões e os desleixos.

          Cada um sabia o íntimo de si e do lugar. Como se fosse necessário dar conta do vazio da rua para provar que nem ali nem em qualquer outro lugar seríamos capazes de ocupar o espaço. A fraqueza era forte. Aliás, era a que tinha mais força no meio de nós. Mas um momento, talvez pelo incômodo ou porque palavra guardada machuca coração, a coragem dele sobressaiu para me dizer aquelas palavras. E eu só consigo repeti-las internamente feito mantra secreto. E lembrar da força com que ele proferiu-as, cheio de vigor e certeza. Eu poderia negar. É, eu poderia fazer qualquer coisa que estivesse ao alcance para livrar-me da raiva que viria em seguida ao som daquela música melancólica e ter mais vontade ainda de escrever. Mas eu apenas concordei. Fiz que sim com a cabeça e engoli suas palavras, mastigando as perturbações que vinham com elas.

           - E tem mais, disse ele. - Não há esplender e glória.
           - Não era pra ter.
           - Ainda bem. A beleza está no escuro.

      A tarde se atrasa porque a noite só vem quando as respostas são dadas. E a angústia de seu desaparecimento ia nos fazendo pessoas menores querendo dar um basta nas coisas que insistem em não acontecer. E são grandes, talvez não no tamanho, mas na intensidade. Enquanto a nossa coragem ia voando com o tempo, para além, deixando antes do fim, uma marca vermelha na pele. Para dizer que vai haver sempre um ramalhete de rosas antes de partir, e lembranças como passaportes de volta. É talvez sabendo disto que ele levanta e vai embora. Sem olhar para trás, ou pelo risco ou pelo orgulho. A sensação de dever cumprido estava estampada na sola dos seus pés, e a medida que ele caminhava, eu me sentia condenada à nunca mais ter meus delírios e escritas fantasiosas. Parecia que d'agora em diante, eu só saberia escrever o martírio e o grito abafado das batidas dos corações que vivem de verdade. E são.

         E quando, longe, ele virava a esquina, o peso e o desgosto da suas palavras caíram sobre mim. E eu ia me perdendo até não sentir mais a consistência do corpo. Era como se, pela primeira vez, eu fosse real. No mesmo tom do mundo. Nunca mais poderia sonhar as histórias que não existem. E em um estalo, um flor vermelha querendo se libertar do cimento, se mostrou viva. E mais forte que todas as flores bem cuidadas no jardim. Então eu soube que as mesmas ilusões estariam guardadas no profundo de mim, e disparariam ao meu embate quando voltasse. Pois tudo acaba na ponta dos dedos e incendeia um reencontro. 

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