segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

        Página trigésima do diário de um homem aos 40.


         Na correria da sala para o quarto a gente mal percebia o excesso de primavera lá fora, e Mariane muito menos, que imaginava sair pela fronteira da cidade como um prisioneiro saindo do calabouço rumo à aurora. Dizendo pr'eu andar logo, perguntando se eu não tinha esquecido nada. Pouco tempo na vida, ela explicava. Só que o tempo não importa. A gente até se adianta com as malas para não perder o pôr do sol na estrada, porém nunca entardece. O brilho continua nos olhos, nos sonhos e na esperança do horizonte salvar o dia. Mas eu, certamente, tinha esquecido muitas coisas. Entre os objetos que sempre são deixados para trás, ficaram as promessas de guardar os segredos que não existem, as palavras que um dia precisaram sair, uma verdade que eu não fiz questão de entender. Iria eu e os resquícios de mim empacotados na bagagem. 

         Eu até entendia. Nessa terra, nesse chão, havia perturbação demais para ela pisar com equilíbrio, para se manter constante. Seria sua carta de alforria, a liberdade há anos planejada. Apesar que vendo sua euforia contaminar a casa morna, eu cheguei a pensar que Mariane era incorrigível. Ela colocava a culpa de tanta instabilidade no barulho das buzinas, na altura dos prédios, no cinza do céu, mas sempre seria para mim um desespero. A aflição em nunca bastar, a intensidade de sentir, de ser. Escorado, observando ela fechar a última janela, eu simplificava seu nome para Mar. Mar apenas, indo e vindo com suas incertezas, dúvidas, mistérios e força. Infinito. Uma alegoria de mim. Uma extensão que eu fazia questão de ter. Então é quando ela sossega na minha frente esperando eu dizer que nunca mais voltaríamos, só que o nunca mais é perigoso e não é meu.

         Cruzamos o estado horas depois. Mariane parecia mais leve, sua felicidade podia despertar o sol às nove horas e doze que marcavam o relógio. Podia flutuar pelo ar como se não fosse real. Enquanto ela sorria satisfeita, eu desejava ter coragem para enfrentar o futuro, querendo ter a firmeza de não esperar nada dele, sem objetivos, sem destinos. Como agora, sem rumo na estrada, topando parar em qualquer cidade, vilarejo, pontes. Desprovido de mapas, de medos e da melodia dessa canção da rádio que eu não sei cantar junto. Sem riscos, ilusões. Sem ser a vítima, sem fazer culpados, só eu e qualquer banalidade que sirva de inspiração. Sozinho. Pra inventar vida onde nunca saiu um suspiro. 

          Mariane finge que dorme porque não é capaz de suportar minha vontade de passe livre. Acho que nessa hora ela compreendia a dor e solidão dos paulistanos que tanto tagarelavam. Eu olho pelo retrovisor e ao longe vejo o espaço e o horizonte metamorfoseados. Queria poder segurar os meus olhos dessa vez, talvez por necessidade. Eu não via ninguém indo embora além de mim. A noite escureceu em tom de luto. E o vidro da janela fechado era  capaz de separar dois mundos. Um amante e sua terra natal. O coração não deu trégua.
E nem podia. 

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