terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Sala de consultório

Sentou-se de frente, olhou pelo vidro e descansou o corpo. 
          - Você sabe como vão conseguir viajar no tempo? 
Soltou as palavras que atravessaram no ar, macias e quase entusiasmadas. Ficava difícil não encarar os olhos claros sem desfrutar do seu semblante sentimentalista, sem deixar que seu precioso brilhantismo decidisse pelo destino todos os dias. O silêncio na sala empoeirada e vazia respondia mais que os lábios. E diziam sim para tudo que ele pedia, para abrir as trancas e libertar toda conclusão melancólica e cheia de insônia em detrimento das noites perdidas. 
         - Uma volta ao redor da terra em vinte e quatro horas na velocidade da luz corresponde à cem anos à frente dentro do planeta. Ou atrás. Eles ainda tem dúvida.  
Ele continuou calmo e, sobretudo, castigado. Pelo controle, pela maldita tecnologia, pela esperança. Talvez houvesse oportunidade de mudar cem anos de história, cem anos ardentes, gloriosos ou fracassados pelas mentes que morreriam num sopro e outras que nasceriam assumidamente sem querer. Ninguém sentiria falta, afinal. Só ele. Ele cheio de desgaste, tristeza e beleza, carregando nos ombros um outro olhar das coisas. Um pouco meio assombrado.
         - Foi provado que seria bem possível, mas ainda não temos condições operacionais.
E, de repente, um sorriso mudo de chacota apareceu. "Operacionais" repetia pra si mesmo. A moça da frente, finalmente, observou-o com mais cautela e pensava que o mundo não passava de poeira arranhando sua garganta, entupindo suas artérias, afundando-a tão dependente e quebradiça. Era farelo em excesso. Do mundo, da sala e das confissões que permaneciam em segredo. 
        - Você quer um cigarro? 
Ela ofereceu como se cedesse dividir o ombro meio-a-meio. Porque ninguém podia afinal consolá-los da verdade subtendida, resgatá-los de si mesmos. Eram os dois e a solução inacessível. A solidão viajando no espaço, só no escuro com coragem estupidamente escolhida sem pensar. 
       - Eu não fumo.
       - Nem eu.
       - Mas tem cigarro aí?
       - Tenho.
Um longo período calado se estendeu dando tempo para recuperar do susto. Susto de viver, de pensar em viagens no tempo, o gosto dos cigarros e os raios de sol entrando pela persiana meia aberta. O medo chega sempre primeiro que a resposta na língua. Então ficaram quietos, longe, tardes demais. Chuviscos de possibilidades queimavam por dentro, temiam em ficar, temiam ir embora. É sempre mais difícil do que se imagina. 
    - Eu não quero estar vivo quando isso acontecer, mas eu vejo as coisas que dizem sobre discos voadores. Já parou pensar que talvez ET seja apenas alguém como nós vindo do futuro?
Ela olhou para fora. Era, acima de tudo, o que ela não devia fazer. Investigava motivos, deixava estender das raízes ao mais profundo do coração, desenterrava respostas esquecidas. Não podia confessar, mas confessou que morreria se fosse proibida de colher girassóis no fundo do quintal. 
       - Eu não entendo. 
Finalmente ela disse. 
       - Por que está me contando essas coisas? Completou.
       - Eu não sei. Eu também não entendo.
Foi quando ela levantou-se em súbita certeza imprevisível e ficou em pé mais ao canto. Observando ela andar, ele tentava escutar os ossos rangerem, as articulações fracas, os tendões travados, mas só podia ouvir o blues que transbordava da sua alma. O que faria se tivesse forças para não deixar que as mensagens que ricochetearam o peito saíssem de si? Era só mais uma pergunta sem resposta em uma dia sem sentido. Na verdade, não era a primeira da vida, nem seria a última. 
      - Como se sentiria se soubesse o dia da sua morte?
Ela disse ao fundo de costas para ele. 
      - Eu ficaria mais triste cada dia mais próximo. Pausou. 
      - A morte é bela. E triste. Quanto mais triste, mais bela.
O telefone tocou. Vibrou pelo ar como um intruso. O homem suspirou e tudo permaneceu em seu lugar percebendo que ele era cansado. Ela espiou a porta e ninguém vinha. A parede pérola que reluzia mais do que nunca, se ofuscou quando eles se perderam. Quando desatados ficaram ouvindo o barulho que preenchia o lugar. Tocou a quinta uma vez e parou. Foi quando ela sentou novamente, agora do lado dele e suspirou também. O silêncio do inicio reinaugurou sobre eles, inesperado. Ele olhava para o relógio e menos calmo e mais agitado, cruzou os braços. Foi quando se deram conta do tempo que passou. Ligeiro e imperceptível. Perigoso.
    - Quanta demora, o sol já vai se pôr. Ela disse porque de um jeito estranho, o silêncio tornou-se insuportável. Ela assumiu uma língua vermelha, que não podia impedir as palavras de sair por precaução. 
- O sol? Eu não ligo pro sol. Prefiro contemplar a lua. Ou as estrelas. Comestíveis e ilustres. Tão poderosas.
Ele disse de tal forma que ela o conheceu. Não, o reconheceu, como se ela já tivesse o conhecido antes, mas agora descobriu novamente. E descobriu mais vivo, maior, bem mais cortante.
      - Dizem que as constelações ditam destinos, você sabia?
     - Não é todo dia que constelações encandeiam no céu. Não todo dia, garota. Aproveite e tome cuidado.
Eles se encontraram de novo. Enlaçando pontas, juntando quebra-cabeças imaginários. Mais próximos, mais íntimos. Quase uma única opção. 
      - Dizem também que quando o amor pega pelas mãos é para nunca mais.
      - Você acredita?
      - Acho que não importa. Minhas mãos não são puras e isso não importa. Nem que fossem, importaria.
Foi quando uma mulher de verde entrou na sala e as janelas tomaram um tom diferente. Desculpou o atraso e disse que marcariam um outro horário para outro dia, porque houve imprevisto. Já na rua, onde os carros buzinavam, ela virou-se para ele e perguntou:
      - Qual seu nome?
      - Isso também não importa. 
Já era noite e ele partiu, sabendo que nunca mais veriam uma mulher de verde naquele ano, nunca poderiam também, entender o que houve. Nunca se pode, de um jeito ou de outro. Ela olhando para o céu, percebeu que não havia estrelas. Mas isso, não importa.

2 comentários:

  1. É sempre um prazer literário entrar aqui, algumas manhãs, e perder (ou ganhar) uns minutos lendo suas palavras. Adoro sua constância, seu léxico e grande parte das suas ideologias históricas. Tão bonito. Tão bonita.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, Claudia. O Anjo (in)verso. Eu fico tão feliz em saber que posso, de alguma forma, despertar isso em você. Logo eu, que também admiro muito seus "silêncios estrondosos" como você mesma diz. É sempre bom ter você aqui nesse cantinho, as vezes abandonado, mas sempre aberto para visitas. Fico muito feliz por suas palavras, obrigada.

      Excluir