sábado, 6 de abril de 2013

Minha maior história

Um monte de discos. Um em cima do outro, formando uma pilastra empoeirada de papelão. Acho que um dia eu os contei. Quem sabe setenta, oitenta. Acho que um dia eu também prometi ouvi-los. Eles tem umas capas realmente bonitas. Autênticas alguns diriam. Mas a verdade é que eu tenho esse monte de música que não sei cantar nem tocar nem dançar. Eu não sei, ao menos, como pode alguém ter música assim. Eu estou aqui sentado a não sei quanto tempo, escrevendo devagarinho pra não ficar de porre. E eu também não sei como é possível ficar de porre escrevendo. Eu não sei uma série de outras coisas, só que essa sala escureceu muito rápido. Escureceu e o ar parece agora mais pesado. Despencando sobre os labirintos das traças e sobre as molduras douradas dos quadros na parede.

Também é preciso deixar claro que eu não tenho abajur nem lareira. Eu não tenho lareira porque não sei acender, e não tenho abajur porque brilha demais. Então eu tô escuro aqui também, o vidro da minha taça quase cintila, os talheres de prata quase reluzem, mas não faz diferença. Eu olho para todos os lados e não encontro nada suave e macio para eu ter vontade de pintar rostos. Pintar rostos sempre fazia uma baita diferença, porque que nunca os conhecia. Eram estranhos, mas nunca eram  rostos. Alguns de particularmente bocas finas e olhos fundos, porém todos poderosos e puros. E eu podia inventar para eles os nomes que eu quisesse e podia dá-los histórias e podia fingir ser todos eles ao mesmo tempo. Só que o ar tem que ser levíssimo. E agora só tem vazio e escuridão e minha taça de vinho tinto e meu pijama velho. A casa parece ser bem maior, soa como um vasto espaço de colocar os ardores da minha alma irritada. Sim. Irritadíssima. Porque eu já quis achar essa casa imensa, eu já planejei todos os móveis ideais para aumentar a sensação de que eu podia espalhar meus livros no chão e esses discos, agora todos encaixadinhos. Eu odeio a organização dos discos.  Mas hoje eu queria que estivesse pequena, encolhida. Só hoje porque a noite vem chegando bem mais densa do que a natureza podia imaginar. E eu queria ver as quatro paredes tocando geladas na minha pele.

Dizem que eu vivo contrariado.
Deve ser verdade.
Mas tudo começou no segundo andar de uma galeria de arte. Eu ouvia muitas histórias terríveis sobre as galerias de arte, mas acho que não existe uma mais terrível que esta. Foi lá que eu conheci Catarine, uma jovem ardente. Ela tinha paixão por discos e cheirava a lavanda. Preciso dizer também, que ela é a grande culpada. Por causa dela, eu nunca mais consegui pintar. Catarine tinha um rosto com nome, história e vida própria. Eu juro que por mil vezes eu quis sugar todas as minhas forças para fazê-lo tão perfeito como tal. Mas os olhos não eram profundos o suficiente, a boca não era fina o suficiente, os cabelos não eram encaracolados o suficiente. "Eu gostei" ela dizia a cada tentativa vã. Mas não. Nunca era bonito o suficiente. O desenho não era quente como ela nem tão firme. Perto daquela pele branca eu era pequeno, fraco e miserável. Catarine, eu devo dizer, me deu o melhor e maior amor do mundo. Eu não suportei, entretanto, não ter o seu vívido rosto assinado pelo meu nome. Eu apenas pedi que fosse embora. "Se me amas mesmo, vá e mate-se imediatamente". Quando ela se foi eu não consegui deixar que ela levasse os discos. Eu ainda queria entender o porquê. É agoniante vê-los ali, apodrecendo junto com nossas histórias.

• Catarine era minha música, ela cantava pra mim, tocava pra mim, dançava no saguão •

E agora? Agora eu não sei. Comecei sem saber e termino do mesmo modo. Acho que a gente nunca pode mesmo saber. Numa noite como essas eu sento e bebo e fico sentimental e choro. Porque tudo morreu com aquele rosto, e a vida se esvai por essa vácuo e esse papel em branco na minha frete. Que hoje eu escrevi nele ao invés de arriscar outro desenho. Também não sei porquê. Eu quero simplesmente contar as minhas histórias sem ter que explicar. Sem ter que entender também. E Catarine é minha maior história. E meu maior desentendimento. Acho que é por isso que eu a amo tanto.

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