terça-feira, 21 de maio de 2013

Raul,
te escrevo para falar sobre aquela russa que vi na Avenida Principal. De pernas e braços tatuados, shortinho e bota. Entre os amigos tinha apelido de Arte e cultivava o costume de andar a pé a noite inteira com a vida bêbada dentro do bolso. "É sempre assim, camarada." Ela dizia. "Se é uma ilusão, podia ser pior: uma ilusão de outras ilusões que nasceram no primeiro dia do mundo". Sim. Os outros ao redor adoravam ouvi-la. Percebia-se pelos olhos cheios de dentes que devoravam aquelas palavras que eram vomitadas por sua voz quente e ácida. É certo que não a compreendiam, mas aquela bela garota se tratava de uma russa com gosto de mate. Então eles aplaudiam muitas vezes. Lhe compravam uns discos e a convidavam para os bares. Ninguém quer perder a oportunidade de uma russa. Melhor ainda se uma oportunidade de uma russa com um Rayuela nas mãos. Vermelho. Com todo o ritmo e alucinação que ele prometia ao som do jazz.

Sobre a russa, o que posso dizer: uma urbanóide em tempo integral? Cheia de eus desencontrados em corredores de becos n'uma tarde sem encanto de domingo? Que houve uma canção e outra, e outra e outra enquanto joga pôquer até a alvorada? Ah, essa juventude, eu fico imaginando você resmungar, é um escapismo de merda. O mundo é frágil e doente, baixo e miserável. Mas e quanto a nós, Raul? um bando de covardes procurando simbolismos para sobreviver. Cheio de dimensões entre espaço-tempo-fôlego-e-latejo. Tão ocupados com a preocupação de aforismos incompletos e vãs tentativas de um instante de inspiração. Embora nosso impulso esteja faminto como um animal, nosso corpo está indescritivelmente cansado. Seus olhos fecham antes do anoitecer e meus lábios emudecem antes do nascer do sol. De todos os acasos, o descaso pessimista da vontade.

Ainda assim, eu sei que toparíamos qualquer fuga. Qualquer possibilidade de mala no banco de trás. Pela maneira que for. Eu sei. Eu sei. Iríamos e iríamos pronunciando versos de um literato genial até que apenas leríamos um ao outro com os olhos. Uma necessidade iminente de pedir socorro, paz e amor urgente. Uma aventura pelas estradas curvas de Santos. Somos assim: um pedido. Um anseio. Uma tatuagem de rio seco em que a vida costumava fluir. E o caminho é este: de palavras feridas, impronunciadas e luzes pelo asfalto liso. Uma armadilha do destino em que cairíamos sem escolha, sem tempo, sem censura.

O tempo gira cata-ventos, ponteiros e girassóis, mas a nossa alma não deixa os sonhos circular. Você está entendendo agora? Está entendendo do que se trata meu delírio cru e emergente? A gente queria salvar o mundo de suas bifurcações. Queríamos resgatá-lo pela ternura e pela compaixão. Mas sua incompreensão é um desespero que rejuvenesce enquanto nossa pele perde a vitalidade. Nos roubam a ousadia no susto. Então é que nos transformamos lentamente nessa despedida eterna e repetitiva. Eu não queria que fosse assim, da mesma forma, que não queria que os pássaros migrassem pelo medo. A sinceridade é uma coisa que eu tenho afogado dia a dia, mas eu me enjoo muito rápido e os braços caem em exaustão antes da morte. E a sinceridade, uiva, Raul, feito um lobo uivando para lua. Eu e você e aquela russa de shortinho e bota. Nós somos de verdade. A cidade atesta. Somos reais como é real a fronteira dos nossos pés. Mas somos apenas pessoas comuns. Com cortes implorando por sutura. Eu sei que dói como machuca também a saudade de termos abundante revolução pessoal. Você sabe também que somos, além de comuns, uns sensíveis em excesso. Talvez poderíamos ser os visionários, os escritores, os sentimentalistas sábios. Mas a covardia nos sufoca. Eu estou cansada. É um cansaço que me devora. E o chão que eu piso não passa de uma ilusão dentro de outra ilusão, que está dentro de outra, dentro de outra...

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