Raul,
te escrevo para falar sobre aquela russa que vi na Avenida Principal. De pernas e braços tatuados, shortinho e bota. Entre os amigos tinha apelido de Arte e cultivava o costume de andar a pé a noite inteira com a vida bêbada dentro do bolso. "É sempre assim, camarada." Ela dizia. "Se é uma ilusão, podia ser pior: uma ilusão de outras ilusões que nasceram no primeiro dia do mundo". Sim. Os outros ao redor adoravam ouvi-la. Percebia-se pelos olhos cheios de dentes que devoravam aquelas palavras que eram vomitadas por sua voz quente e ácida. É certo que não a compreendiam, mas aquela bela garota se tratava de uma russa com gosto de mate. Então eles aplaudiam muitas vezes. Lhe compravam uns discos e a convidavam para os bares. Ninguém quer perder a oportunidade de uma russa. Melhor ainda se uma oportunidade de uma russa com um Rayuela nas mãos. Vermelho. Com todo o ritmo e alucinação que ele prometia ao som do jazz.
Sobre a russa, o que posso dizer: uma urbanóide em tempo integral? Cheia de eus desencontrados em corredores de becos n'uma tarde sem encanto de domingo? Que houve uma canção e outra, e outra e outra enquanto joga pôquer até a alvorada? Ah, essa juventude, eu fico imaginando você resmungar, é um escapismo de merda. O mundo é frágil e doente, baixo e miserável. Mas e quanto a nós, Raul? um bando de covardes procurando simbolismos para sobreviver. Cheio de dimensões entre espaço-tempo-fôlego-e-latejo. Tão ocupados com a preocupação de aforismos incompletos e vãs tentativas de um instante de inspiração. Embora nosso impulso esteja faminto como um animal, nosso corpo está indescritivelmente cansado. Seus olhos fecham antes do anoitecer e meus lábios emudecem antes do nascer do sol. De todos os acasos, o descaso pessimista da vontade.
Ainda assim, eu sei que toparíamos qualquer fuga. Qualquer possibilidade de mala no banco de trás. Pela maneira que for. Eu sei. Eu sei. Iríamos e iríamos pronunciando versos de um literato genial até que apenas leríamos um ao outro com os olhos. Uma necessidade iminente de pedir socorro, paz e amor urgente. Uma aventura pelas estradas curvas de Santos. Somos assim: um pedido. Um anseio. Uma tatuagem de rio seco em que a vida costumava fluir. E o caminho é este: de palavras feridas, impronunciadas e luzes pelo asfalto liso. Uma armadilha do destino em que cairíamos sem escolha, sem tempo, sem censura.
O tempo gira cata-ventos, ponteiros e girassóis, mas a nossa alma não deixa os sonhos circular. Você está entendendo agora? Está entendendo do que se trata meu delírio cru e emergente? A gente queria salvar o mundo de suas bifurcações. Queríamos resgatá-lo pela ternura e pela compaixão. Mas sua incompreensão é um desespero que rejuvenesce enquanto nossa pele perde a vitalidade. Nos roubam a ousadia no susto. Então é que nos transformamos lentamente nessa despedida eterna e repetitiva. Eu não queria que fosse assim, da mesma forma, que não queria que os pássaros migrassem pelo medo. A sinceridade é uma coisa que eu tenho afogado dia a dia, mas eu me enjoo muito rápido e os braços caem em exaustão antes da morte. E a sinceridade, uiva, Raul, feito um lobo uivando para lua. Eu e você e aquela russa de shortinho e bota. Nós somos de verdade. A cidade atesta. Somos reais como é real a fronteira dos nossos pés. Mas somos apenas pessoas comuns. Com cortes implorando por sutura. Eu sei que dói como machuca também a saudade de termos abundante revolução pessoal. Você sabe também que somos, além de comuns, uns sensíveis em excesso. Talvez poderíamos ser os visionários, os escritores, os sentimentalistas sábios. Mas a covardia nos sufoca. Eu estou cansada. É um cansaço que me devora. E o chão que eu piso não passa de uma ilusão dentro de outra ilusão, que está dentro de outra, dentro de outra...
te escrevo para falar sobre aquela russa que vi na Avenida Principal. De pernas e braços tatuados, shortinho e bota. Entre os amigos tinha apelido de Arte e cultivava o costume de andar a pé a noite inteira com a vida bêbada dentro do bolso. "É sempre assim, camarada." Ela dizia. "Se é uma ilusão, podia ser pior: uma ilusão de outras ilusões que nasceram no primeiro dia do mundo". Sim. Os outros ao redor adoravam ouvi-la. Percebia-se pelos olhos cheios de dentes que devoravam aquelas palavras que eram vomitadas por sua voz quente e ácida. É certo que não a compreendiam, mas aquela bela garota se tratava de uma russa com gosto de mate. Então eles aplaudiam muitas vezes. Lhe compravam uns discos e a convidavam para os bares. Ninguém quer perder a oportunidade de uma russa. Melhor ainda se uma oportunidade de uma russa com um Rayuela nas mãos. Vermelho. Com todo o ritmo e alucinação que ele prometia ao som do jazz.
Sobre a russa, o que posso dizer: uma urbanóide em tempo integral? Cheia de eus desencontrados em corredores de becos n'uma tarde sem encanto de domingo? Que houve uma canção e outra, e outra e outra enquanto joga pôquer até a alvorada? Ah, essa juventude, eu fico imaginando você resmungar, é um escapismo de merda. O mundo é frágil e doente, baixo e miserável. Mas e quanto a nós, Raul? um bando de covardes procurando simbolismos para sobreviver. Cheio de dimensões entre espaço-tempo-fôlego-e-latejo. Tão ocupados com a preocupação de aforismos incompletos e vãs tentativas de um instante de inspiração. Embora nosso impulso esteja faminto como um animal, nosso corpo está indescritivelmente cansado. Seus olhos fecham antes do anoitecer e meus lábios emudecem antes do nascer do sol. De todos os acasos, o descaso pessimista da vontade.
Ainda assim, eu sei que toparíamos qualquer fuga. Qualquer possibilidade de mala no banco de trás. Pela maneira que for. Eu sei. Eu sei. Iríamos e iríamos pronunciando versos de um literato genial até que apenas leríamos um ao outro com os olhos. Uma necessidade iminente de pedir socorro, paz e amor urgente. Uma aventura pelas estradas curvas de Santos. Somos assim: um pedido. Um anseio. Uma tatuagem de rio seco em que a vida costumava fluir. E o caminho é este: de palavras feridas, impronunciadas e luzes pelo asfalto liso. Uma armadilha do destino em que cairíamos sem escolha, sem tempo, sem censura.
O tempo gira cata-ventos, ponteiros e girassóis, mas a nossa alma não deixa os sonhos circular. Você está entendendo agora? Está entendendo do que se trata meu delírio cru e emergente? A gente queria salvar o mundo de suas bifurcações. Queríamos resgatá-lo pela ternura e pela compaixão. Mas sua incompreensão é um desespero que rejuvenesce enquanto nossa pele perde a vitalidade. Nos roubam a ousadia no susto. Então é que nos transformamos lentamente nessa despedida eterna e repetitiva. Eu não queria que fosse assim, da mesma forma, que não queria que os pássaros migrassem pelo medo. A sinceridade é uma coisa que eu tenho afogado dia a dia, mas eu me enjoo muito rápido e os braços caem em exaustão antes da morte. E a sinceridade, uiva, Raul, feito um lobo uivando para lua. Eu e você e aquela russa de shortinho e bota. Nós somos de verdade. A cidade atesta. Somos reais como é real a fronteira dos nossos pés. Mas somos apenas pessoas comuns. Com cortes implorando por sutura. Eu sei que dói como machuca também a saudade de termos abundante revolução pessoal. Você sabe também que somos, além de comuns, uns sensíveis em excesso. Talvez poderíamos ser os visionários, os escritores, os sentimentalistas sábios. Mas a covardia nos sufoca. Eu estou cansada. É um cansaço que me devora. E o chão que eu piso não passa de uma ilusão dentro de outra ilusão, que está dentro de outra, dentro de outra...
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