quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Qual é a pergunta fundamental?

É verdade, Lúcia, quem há de escrever há de se entregar à mentiras, hipocrisias, ocultamentos e dissimulações. Há até mesmo de ser entregar à beleza da própria falta de compreensão, pois ninguém alcança a verdade e, ainda que alcançasse, não poderia usá-la. Aos 19, eu poderia ser essencialmente enganadora, cafajeste, impostora. 

Não foi você que confessou ter falado baixo e escrito mais baixo ainda para que, no vazio do quarto, o eco não devolvesse a solidão? Não foi você que disse que qualquer mentira bem repetida passa-se por verdade e que, por isso, ao pé do meu ouvido, pronunciou o seu nome? Sim, eu me lembro, você lia Poe, "agressi suntr mare tenebraum, quid in eo esset exploraturi*" quando eu cheguei. 

(Eu, ontem à noite, tive um pensamento que, se escrito, algumas pessoas ainda nem nascidas, mas destinadas à desventura, sentiriam profundamente).

(Ou talvez, eu. Mas quem que for me censurar que seja mais sincero do que eu).

E saiba, Lúcia, que a sinceridade requer coragem, porque entre o anoitecer de ontem e o amanhecer de hoje, qualquer movimento do corpo se propaga como um raio de sol às 03:23h. Há 7 bilhões de corações batendo junto ao teu, mas só o seu - somente ele - pulsa na mesma frequência do oceano da "luz inefável", em que só os aventureiros do geógrafo núbio tiveram a ousadia de atravessar.

Depois do pensamento, eu destruí todas as anotações, além de cartas e bilhetes. Eram como uma esfinge afundando-se em areia movediça. Eu tinha apenas um olho respirando entre os papéis. E se engana quem pensa que é se libertando que se é livre. Observando pesarosamente tudo que existia entre o espaço de uma linha e outra, vi-me muitas vezes como uma conquistadora, uma heroína, uma aventureira destemida. E, veja, já chamaram de forjadores, de loucos e de gênios àqueles que sabem muitas coisas que escapam aos nossos sentidos. Como se tudo que é profundo, glorioso ou muito pessoal tivesse nascido doente.

Qual é a pergunta fundamental, Lúcia? Perceba.

Incide um pouco mais de você sobre minha janela, mas eu fecho os olhos para não cegar. Uma imensidão ser. E penso que nunca mais serei a mesma. Você já te percebeu, Lúcia? Naquele instante em que chegou na outra margem? O que você viu? Essa é uma coisa que só se responde falando bem baixo e escrevendo mais baixo ainda às 03:22h.


*do latim (literal): "que possuíam a loucura de atravessar os oceanos obscuros, para simplesmente, descobrirem quem eram", by E. A. P. in  Leonor.

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