quinta-feira, 21 de junho de 2012

Marginal

   Meus sonhos começaram a alcançar os outdoors da rua, Bernardo. Repentinamente, eu decidi que seria melhor viver nem que seja para falar no final que isso não é pra mim. Foi em uma noites dessas em que eu apaguei as luzes e atentei os meus ouvidos para as vozes do coração, seguindo estupidamente seu conselho. Eu cansei de tentar me descobrir, correr atrás de desvendar os meus motivos, minha história inválida, você sabe que eu tenho preguiça de me organizar e vasculhar os mistérios antigos e aconchegados, então eu só sentei chorei um pouco e destemida aceitei o desafio de seguir o que não se pode mais descobrir por culpa da pressa.
    E apesar disso, eu ainda sofro de calafrios, mas provavelmente no fim da tarde, quando o sol está morno e que se por algum motivo esquecesse o relógio não saberia dizer se seria a manhã laranja ou fim do dia pousando calmo. Eu tenho pavor desses momentos em que tudo parece pleno, satisfeito e terno demais para essa cobrança veloz encima das minhas costas. E me sobe um medo, uma pontada de dúvida e a vontade de pular fora. Algumas vezes corri para acender um mínimo de claridade, o suficiente para esconder debaixo do colchão o papelzinho da promessa e depois me corre uma culpa, Bernardo. Eu me perco entre o que eu sou e poderia ser dependendo da escolha de agora. Mas na mesma hora que me vem sua imagem e a voz rouca eu fico angustiada em trair nosso combinado - sua personalidade é mais cruel que minha covardia.
    Eu permaneceria tranquila se por ventura eu devesse apenas ficar sentada na rede colorida observando o vento cantar e sem motivo aparente levantar vistosa o aplaudindo pela melodia que derruba e ultrapassa as próprias barreiras, pensando como a natureza é sábia. Absorvendo um pouco dessa facilidade com que tudo flui para atingir o que lhe é sonhado. E o sonho ou a falta dele me atormenta. Por isso eu fico dentro do cubículo. Assustada e mísera. Ah, Bernardo, eu cultivei essa vontade por sua causa e agora não dou conta do tranco. Parece que nada me toca, nada me atrai com força suficiente para me fazer levantar e correr atrás. Assim como os outdoors estão distantes e fixos. É por isso que vivo acumulada.
   Agora eu me sinto horrível, Bernardo. E não mais por você ou porque sou covarde e cruel com o amor das pessoas, mas pela obstrução interna, esse estorno cultivado. Até posso imaginar seu rosto de indignação e sua boca torta resmungando - dificuldade maldita! E talvez mesmo assim eu continue serena. Agora você compreende? Eu mal consigo afirmar se é totalmente meu o desejo de sair da trincheira e voar por cima das nuvens de chumbo como conversamos, é tão protegido meu conforto, tão leve de carregar, por mais que eu perca os sentidos, a razão, por mais que a impaciência grite basta, permaneço estática, impedida, presa. Por que? Pelo quê? Só nesse único momento eu queria a glória das respostas. 
   Essa noite eu tive um sonho, tão perto que salivei. Era nossa livraria, Bernardo. Larga, extensa, parecia ser infinita como a imensidão de palavras que gastamos ali. Prateleiras enormes, cochichando para o teto os títulos dos livros grossos, entediantes e por Deus, sagrados. Tão poderosos e vivos. Eu nunca acordei tão incomodada e fraca como. Parecia que minhas pernas queriam correr sozinhas para esse lugar magnífico e as pálpebras colarem com os olhos fechados e eu pudesse permanecer eterna nesse amontoado de páginas velhas e amarelas, com móveis escuros e luz cansada. Silenciosa e completa. Tão cheia e satisfeita com o além. Só que depois tudo começou a desmoronar, como uma chuva final, o ponto decisivo que traria consigo a decisão de deixar ou levar. E caía tudo, Bernardo, todo o patrimônio deslizando até tudo se transformar num imenso buraco oco. Você gritava, corria de um lado a outro tentado salvar alguma coisa, pedindo socorro, ecoando meu nome. Enquanto eu permanecia sentada vendo tudo de fora, parecia que sorria, e eu ainda estava tranquila.
   Que pavor, que remoço, que desespero, Bernardo, porque agora eu lembro e te conto tudo leve, nem me nasce uma vontade de chorar. Serena vendo tudo se misturar, embolar dentro de mim. Aconteço do lado de fora, na tangente da própria existência. Nunca vi o meio do mundo e fico pensando se terei garra para ver. Nessa noite meu futuro foi demolido e eu concordei sem pensar. Nunca vai passar esse tempo? Eu me vejo no espelho e fico imaginando se a palma da sua mão ainda abraça a maça do meu rosto, se meu cabelo cresceu desde a última vez. Tudo parece tristemente igual...  

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