terça-feira, 12 de junho de 2012

Um banco, um aforismo e dois corações inteligentes

    O dia estava febril e o céu límpido, alaranjado e brilhante. Eu andava na rua sem compromisso com o tempo, porque ele não importa quando estamos dentro do combinado. O tempo só incomoda os que não o dão atenção necessária. E já que o tempo não é o importante agora, o que deve ser ressaltado é essa é uma história sobre a sabedoria dos ignorados, e uma destas tinha a pele branca e sardenta. Umas sardinhas quase avermelhadas no alto das maçãs do rosto, era um charme, só que ela não sabia. E também devia ter cerca de vinte carros passados na avenida enquanto ela estava sentada, o número importa, o tempo não. O número é decisivo, principalmente quando é uma incógnita. O x da questão naquele momento era que havia dois sentados, mas era tão cheios de si, que sentiam por milhares. Quantos? Não sei.
    O que eu sei é que eles estavam calados e entendiam o silêncio do outro no mais profundo que se pode conhecer a alma. Eram desconhecidos, talvez a primeira vez que se viram e, muito provavelmente, a última. Mas não esquecidos, isso não. Eles seriam eternos um para o outro em memória, porque selaram segredos e trocaram confidencias nas entrelinhas dos movimentos mudos. Eu passei e fui embora, mas o que aprendi sobre eles ainda está aqui. 
    O calor do dia ia morrendo ameno e calmo, a lua apareceu gloriosa e reinou sobre o manto da noite. Caiu sobre eles tão suave e íntimo o escurecer, que logo perdeu a graça quando soou a voz do rapaz de blusa azul: uma voz de terra. De quem cavou fundo, achou o tesouro e o enterrou de novo engolindo pó. E enterrou porque é preferível descobrir de maneira mais difícil, sigilosa e súbita. Ou simplesmente, não descobrir.
    - Quer ouvir o aforismo que escrevi, moça?
    - Aforismo?
    - É. Apenas escuta.
   E tudo parou de funcionar. O vento aquietou-se, e o tempo que já não tinha importância, se perdeu e não existia mais. A lua estendeu-se sobre o céu e atentou-se mais precisamente, e as sardinhas da moça - pobre, pobre - reluziram a grandeza roubada das estrelas. Os ouvidos de tudo que era vivo absorveu as atenções e não houve um coração não que escutasse.
    - Então diga, diga. A curiosidade saltou apressada.
    - "Há casos em que a felicidade consiste em não achar."
    Ele adianta um sorriso terno e aliviado, que poderia ser traduzido apenas com sentimentos entrelaçados com a vontade, o desejo forte de que algo muito significativo aconteça e quando por fim, se realiza, morre contente e conformado: era isso que devia ser feito. O mundo volta a acontecer com a temperança diferente, mais satisfeito em ser o que é e não procurar traçar grandes acontecimentos. Tudo flui com outra cor. A cor da terra engolida pelo mendigo que foi cuspida quando outra mendiga sardenta aceitou calada a certeza do rapaz. 
    Isso mesmo, meu coração lateja fulminante e agitado, pouco dolorido pouco sedento por uma história fantástica. Porque uma vez eu ouvi uma criança faminta dizendo a mãe que seria um grande ator de cinema, que um dia ele contaria a história dos sem-terra e faria uma revolução, um filme com um final feliz, e quando engolia ansioso o sonho foi interrompido pela realidade miserável: "se tem final feliz, não é minha história. Sonho não enche barriga de criança pobre."
    Então eles eram dois mendigos sim, imundos e com mau cheiro esparramados pelo banco pedindo esmola e sensibilidade, talvez atenção, talvez piedade. Dó, por Deus. Eram dois mendigos discriminados que sabiam o que eram aforismos, porque é isso que a vida dá: certezas vãs em si mesmo e nas coisas para matar a chance de um acontecimento inesperado. Os esclarecidos, diriam outros, chamam de determinismo. E o que importa afinal numa história como essa, se tudo há de ser como é? Eu despejo a resposta: se encontrar depois dos fatos, porque o que acontece depois que se é feliz, de conquistar o que sempre procurou? Definitivamente, nada.   

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