segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Aquela era realmente uma esperança boa

   Eramos jovens demais para pensar em morrer e isso é suficiente para entender o porque que corríamos com pressa entre a mata fechada às margens do rio cerca de dez quilômetros da casa. Nos garantia certa liberdade - ainda sem saber no que ela exatamente consistia - para o futuro. E ainda não sabemos, só que agora é diferente. 
*
   Eu consigo lembrar de muitos detalhes como a cor da terra, o cheio dos frutos maduros, a posição e o nome que davam às árvores. Só que eu tento não concentrar tanto nisso. Sempre que penso na felicidade tão perto dos dedos sobe-me um arrependimento. Talvez de não ter agarrado-a, talvez só por prazer, uma memória doída em um canto bom da memória. Porque era realmente na medida do que eu imaginava considerando os oito anos de idade. O que importa, na verdade, é que era um lar. Aliás, o Lar. A casa mais seguras de todas as outras, com a natureza mais verde e o amor mais quente do povoado. 

   O quintal era largo, grande. Nele podia caber os sentimentos mais vastos do planeta ou mil universos inteiros. Os dois. (Sim, muito mais que eles). Não era de gente rica, o dono suava bastante para manter comida na mesa e os bois gordos, por isso era chão de terra, laranja e rachado de sol. Num canto mais afastado uma senhora cultivava flores e um pomar. Uma vez eu plantei um pé e comer seu resultado foi o espanto mais encantador que já tive. Do outro lado tinha o curral, onde todo dia às cinco eu ia tirar leite com o senhor. Era leite morno feito o sangue da vaca. Às sete tinha café servido na mesa com muita fartura apesar das dificuldades e logo depois íamos ler Monteiro Lobato. Era precioso. E tudo isso sem saber. 

   Criavam dois cachorros e alguns cavalos. Rex era o maior e mais velho cão da casa, tinha completado quinze anos na última temporada de férias que fui lá. Todas as vezes que chegávamos a primeira cancela da estrada, ele já estava a nossa espera sentado em frente a uma escolinha na beira do caminho. Desta vez meu primo foi comigo e pelo impulso da companhia descemos do carro e prosseguimos correndo até o destino final. Era engraçado ter essa coragem e força inconsciente, uma garra e esperança que conseguiríamos. Era isso que importava, nada mais. Tomamos dois litros da água ao chegar vinte minutos depois e mesmo com os tênis e roupas sujas era impossível estar mais limpo. 

   A primeira coisa a se fazer era ver o velho arrumando o chapéu na cabeça e já indo preparar um gelado banho de mangueira. O tempo mínimo de estadia era um mês inteiro. O suficiente para eternidade.  Podíamos fazer o que quiséssemos menos correr atrás das ovelhas. E amávamos correr atrás delas. Mas a diversão de verdade só começava no fim. E isso não é necessariamente uma verdade, mas é sempre a desculpa para ficar um pouco mais. Então todo fim de janeiro era o silêncio. E não importava o quanto ríamos, brincávamos, quantos brinquedos seriam inventados, quantas histórias ainda haveriam para escutar, mais quantas manhãs no curral ou quantas tardes atrás dos pés de morangos, era sempre o incomodo que soava por detrás de um rosto feliz. E eu ainda não sabia escrever. 
*
   Há um ano fiquei sabendo que a fazenda foi vendida. Sobressaltou uma raiva própria, como se ainda restasse muitas coisas a serem aproveitadas porque nem todas as árvores eu escalei e nem todos os pés de manga eu vi crescer. Ainda há muito a ser feito por lá e quanto ódio de, simplesmente, te-la feito desimportante ao longo do tempo. Ainda não é um alívio detestar esse tipo de ambiente hoje. E talvez seja exatamente por isso que deteste tanto. Pela falta. Fiquei sabendo também que cortaram as árvores. Destruíram o pomar e o jardim para aumentar o curral. E a casa (ah! a casa) foi derrubada. Uma maior, mais moderna e mais limpa: foi esse o argumento. Quanto tempo os sonhos podem durar?

   "E o Rex?"
   "Ele morreu há dois anos."
   "E o que fizeram?"
   "Enterraram no fundo da casa."
 *
   E eu ainda imaginava quantas noites eu podia ter dormido a mais na varanda, quantos grilos ainda poderia segurar com a ponta dos dedos e dizer "que lugar feio, uma roça é sempre um lugar feio". Quantas noites eu ainda poderia ver as estrelas?  Quantas borboletas ainda fariam casulo na janela do meu quarto?  E o joão de barro, será que mantiveram seu ninho?  Eu só cresci por fora de tudo. E essas conversas vagas é como um riso seco de filmes de terror. A verdade é sempre descoberta depois, porque caso seja feita concreta no instante, deixa de ser verdade. E deixa de ser sublime e não soa mais tão especial. O mundo realmente guardou para mim mais surpresas que eu podia recear. 

   E toda vez que alguém fala de ir embora eu sinto minhas pernas aceleradas indo em direção ao leste da casa. Era proibido ir naquele rio, disseram que um menino morreu lá e todo o povoado ficou descolorido e de luto por uma semana. Mas era pra lá que corríamos. Para sermos sempre mais ágeis na hora de agir, para adiar, deixar para depois aquilo que realmente pode ser. Até prometiam que só voltaríamos dois dias depois. Era como ter o mundo nas mãos.  Mas agora esse mundo não existe. Perdeu-se a poeira, o cheiro, a sujeira, os livros de Lobato. 
*
   "Você vem nas próximas férias?"
   "Eu nunca saio daqui."
   "É claro que sai, você está indo embora agora."
   "Mas eu deixei meu nome escrito do lado dos girassóis"
   "E daí?"

   Então o velho arrumava o chapéu de novo e eu pensava que um dia seria gente como ele. Ou então como o menino que morreu no rio que teve o povoado só para ele. Que fugiu para ficar um pouco mais e ainda vive lá até hoje. Com a porta dos comércios fechadas, com a paz de um luto de aleluia. Definitivamente, aquele é um dos lugares mais belos e esquecidos do mundo. 

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