sábado, 18 de maio de 2013

Ensaio

- O céu está pegando fogo!

Gritavam a multidão que erguiam os olhos ao céu acima das cabeças atordoadas. O céu está pegando fogo, o céu está pegando fogo. Por um momento eu recusei cruelmente à levantar o olhar ao céu vermelho, mas eu não pude resistir. O calor chovia e desmaiava sobre minha pele. E lá estava ele, glorioso e flamejante. Eu podia ouvir o clamor das estrelas, eu podia sentir as nuvens derreterem como se fossem parte de mim. Foi quando eu comecei a chorar. Eu chorei de verdade. Como se fosse o primeiro choro sincero do mundo, pelo mundo. Eu chorei as lágrimas que regaria a terra e sua vida verminosa. Mas eu chorei principalmente porque as chamas não caiam. O incêndio se restringia ao céu e eu me senti tão privada dessa destruição egoísta, orgulhosa. Eu queria ser destruída também pelo céu quente em cima de mim, refletindo tudo que um dia eu quis esquecer. Eu chorei feito uma criança indefesa e assustada, porque naquele dia, naquele momento eu queria ver lavas pingando sobre os poros fechados da minha pele, até que me transformasse em cinzas espalhadas no ar, atravessando a atmosfera. Voando entre o espaço com liberdade. A legítima e genuína liberdade. Os joelhos curvavam e o suor era a água que matava a sede da vida. Poucas pessoas ficaram silenciosas e apreciaram o espetáculo tão bem ensaiado. Um ensaio para o abismo, um ensaio para o fim do mundo. Sim. Eram pouquíssimas. E eram as que traziam um sol nos olhos. Ah, foi nesse instante que eu tive um mísero sentimento de raiva. Era a revolta pelo perdão que teve Deus para com os pecados do mundo. Um átomo de ódio que me fez arrepender por todas as vezes que amei cega e intensamente. E a vista ficava turva e o asfalto tremia. Houve grande aflição, gemidos de sofrimento. Houve um mal visitando a cidade, aflorando os medos, os amores perdidos, amaldiçoando as bocas mudas ou escandalosas que, independente de todas as vezes que ousaram vomitar vozes e palavras, permaneciam intactas. Como se fossem mortas, dentes cheios de espinhos, lábios selados em pedidos de piedade e graça. Ah, foi quando eu quis falar. Foi quando eu quis gritar. Porque há direito ao grito. Porque direito à dor. Em quis de uma vez por todas castigar o silêncio pelas noites caladas e pelos morcegos quietos na árvore frutífera que tem do lado de fora da janela do quarto. Foi quando eu quis ter a força que todos os grandes homens da história tiveram para proclamar palavras poderosas, verdadeiras e profundas. Ah, como eu queria ter a coragem para enquadrar toda a agonia de existir nas cordas vocais que agora me traíam, me deixavam abandonada com os fantasmas dos pensamentos. Como se estivessem podres, desfazendo-se, resquícios entalando os órgãos do corpo. Eu odiei e odiei tão bem. Odiei sem a possibilidade de ser salva, odiei como se Deus não estivesse assistindo a espessura que tomaram meus fios de cabelo estirados no chão. Odiei com saudade, sobretudo. Com saudade porque o esquecimento nunca é pleno e nunca é tão puro como o ódio. Eu via os muros e os prédios se descaracterizarem ao meu redor, eu via também minha alma definhando. E percebia que todos me encaravam com firmeza nos olhos. Me observavam com cobrança, com esperança. Me olhavam e me julgavam culpada pela morte no céu. Réu. Réu. Réu pelo que deixei morrer e ainda mais por tudo que insisti que vivesse. Que pelejei, lutei para respirar. A culpa crescia de fora para dentro, até que a protagonista da cena era meu rosto sem forma e vazio e dormente. Era um crime e era totalmente meu, como nunca nada quis ser antes. Me pertencia e com vontade e inteireza, com tanta plenitude e completude que já não importava mais. Simplesmente não era primordial eu provar inocência. Eu queria a culpa todinha com reciprocidade, assim como quis  o desespero de dezoito anos e outras vidas que carregava. Eu quis todo o choro, toda angústia, todo perigo e veneno. Egoísta como o céu, fiz uma ruína particular, uma devastação só minha, em que podia coordenar a intensidade do fogo, a temperatura do estado de espírito. E embora tudo queimava, eu via as feridas vivas, sobrevivendo e se sobressaindo entre a fumaça. Não havia mais volta, eram ágeis e impetuosas. Era a minha exposição dolorida e severa. Cruel como a fúria do mundo. 

E então, de repente, eu acordava. Eu acordava e amanhecia. A alvorada vinha laranja e limpa, macia e suave. Não estarei salva da boa memória. Foi quando eu já precisava também escrever para não sufocar, ainda mais porque ao olhar pela janela e ver o céu intacto e intocável eu soube que o ápice e decadência de mim seria intangível. E o coração ficava pequeno e menor e menor e menor e menor...
O grito estava ali. Eu o bebi a noite inteira e mesmo que não seja de todo dissolvido na garganta, mesmo que permaneça prisioneiro no mesmo lugar. O grito estava acima de qualquer céu queimado acima das nossas cabeças.

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